Criar pelo ímpeto de criar
E fazer as pazes com a ideia de que para florescer todos nós precisamos de estratégia, ainda que ela seja radicalmente simples e silenciosa.
Te escrevo de Corfu.
Uma ilha na Grécia que eu sonho visitar desde que assisti The Durrels e me deixei encantar pelas confusões, aventuras e pelo humor sarcástico dessa irreverente família britânica que em plena década de trinta decide abandonar as tradições enrijecidas da vida na Inglaterra e ir viver uma vida radicalmente viva e solar em terras gregas.
Ao meu alcance está um pratinho de azeitonas com queijo feta e tomate generosamente envoltos na suave suculência de um azeite local que o que não tem de marca e de rótulo tem de sabor. Para bebericar a minha escolha da vez é extremamente inesperada: coca-cola.
Não me julgue.
A última latinha que eu tomei deve ter sido há mais de cinco anos e foi pra curar ressaca.
Dessa vez é para matar viver um desejo.
Desembarquei em terras gregas há alguns poucos dias muito bem acompanhada do meu marido e do nosso pacotinho de vida que chuta cada vez mais forte e que já decidiu nos contar se é menino ou menina, e o plano é ficarmos por aqui tempo o suficiente para trocar o mofo do inverno irlandês por um leve bronzeado mediterrâneo e recarregar os reservatórios de vitamina D que estão chegando em níveis alarmantes de tão baixos.
Daqui eu escreverei os próximos dois bálsamos que serão publicados no nosso cafofo e imagino que quando for a hora de escreve-los eu já estarei bronzeada, energizada e profundamente nutrida pelos ares e gostos da vida vagarosa na costa mediterrânea. Mas por hora eu escolho alquimizar uma reflexão que amadureceu em terras irlandesas e que nasceu em uma inesquecível trilha em família pelos meandros de uma floresta de coníferas no Domingo passado, quando logo depois de te enviar esse bálsamo e compartilhar com você esse deleite, nós saímos de casa decididos a aproveitar cada minuto de sol daquele primeiro Domingo com gosto real de Primavera.
Acho que serei mais breve do que de costume, primeiro porque ficar muitas horas sentada escrevendo tem deixado o corpo da mãe do meu neném incomodado e segundo porque faz sol, a Iemanjá de Corfu nos chama e a minha barriga quer entrar no mar.
Do lado esquerdo da trilha corre um rio e ainda que o nosso passo seja rápido, porque daqui uma hora escurece, todos os petiscos que eu trouxe na mochila já acabaram e porque além de eu estar com uma baita fome nós ainda estamos há alguns quilômetros do carro, eu não passo desatenta por esse presente da Nossa Senhora Natureza que é famosa por recompensar com milagres e insights aqueles que escolhem prestar atenção.
Na outra margem do rio está uma Garça.
Não é a primeira vez que eu vejo uma garça, pelo contrário. A essa altura, porque tantas foram as garças já encontradas pelas minhas andanças pela Irlanda eu já poderia ter banalizado esse tipo de encontro afortunado que, para além de reflexões, traz também para a vida do afortunado a medicina sagrada desse auspicioso animal de poder - algo sobre o qual eu falarei logo ali em baixo.
Mas ainda que não seja a primeira vez que eu vejo uma garça, é sim a primeira vez que eu vejo uma garça armar o bote e com exímia precisão atacar.
Se eu não estivesse desde Dezembro conscientemente desinstagramizando o meu olhar, esse seria o tipo de cena que eu teria assistido na íntegra através da tela do meu telefone ou só pela metade enquanto me ocupava da busca simultânea por tirar o telefone da mochila, desbloquear a tela, abrir a câmera e escolher o filtro.
Mas dessa vez não.
Ao perceber a quase imperceptível presença dela logo ali na outra margem do rio eu apertei a mão do meu marido e quando ele me olhou nos olhos eu falei bem baixinho:
— Look, there’s a Heron over there.
A Garça, que para mim sempre será she (ela) e não it (coisa), estava com o corpo imóvel, como quem no meio de um movimento sofre o encantamento Petrificus Totalus e fica totalmente petrificado.
Ela do lado de lá e nós do lado de cá nos ocupamos de, sem mexer um músculo, esperar.
A espera dela era pela hora perfeita de atacar sua presa. Já a minha, eu entenderia logo mais, era pela imagem perfeita que me faria compreender que uma das minhas maiores relutâncias, quando o assunto é o sucesso do meu empreendimento, é totalmente não justificável.
Pina Bausch, uma das grandes bailarinas de dança contemporânea do século xx e percursora do Teatro Físico e da Dança Teatro, tinha uma famosa frase que foi imortalizada no filme Pina do Wim Wenders:
“Dancem, dancem, senão estaremos perdidos”
Pois eu crio, crio, crio, para não estar perdida.
Crio porque se eu não criar o mundo empobrece um pouco e faz ainda menos sentido, crio porque se eu não fizer arte eu adoeço, diminuo de tamanho, perco o brilho e a vitalidade e deixo de compreender o caos do mundo e as dicotomias do tempo que nós vivemos.
E ainda que o que eu crie seja profundamente medicinal e costume mover águas, desenhar novas paisagens no mundo interior de muita gente e trazer respostas pontuais para as grandes questões da alma, a verdade é que eu não crio para alguém.
Eu crio pelo ímpeto de criar e crio por mim, para me manter sã e só enlouquecer da loucura boa - essa que, ao nos tirar do eixo, nos coloca em órbita. E porque a criação pela própria criação é o que me move e me coloca diariamente pulsante diante da feitura de Arte, seja ela escrita, dançada, assada, falada, cozida ou fermentada, eu durante muito tempo estive relutante em aceitar que para que eu e a minha arte possamos florescer e dar frutos, eu precisarei sim de estratégia.
E não é pouca.
Eu não sei qual é a sua relação com a palavra estratégia e as sensações que ela te desperta, mas te conto que as minhas não eram das mais saudáveis, pelo menos não até eu há alguns poucos meses abrir mão dos quilos de expectativa que eu carregava e mergulhar fundo nos aprendizados do marketing silencioso e vagaroso e até, no Domingo passado, ter esse auspicioso encontro com aquela tal Garça na beira do rio.
E o que uma coisa tem haver com a outra?
Logo você descobrirá.
Eu já tentei criar com estratégia, já passei dias e dias montando calendários e minuciosamente arquitetando cada uma das fases de um lançamento, de dois, três, quatro lançamentos. Já gastei meses planejando o que estava por acontecer e criando o conteúdo que faria esse algo acontecer só para chegar na semana de lançamento adoecida de ansiedade, angústia, desnutrição da alma e cansaço emocional temperados de vômito e ter que cancelar o evento.
E porque eu, literalmente, não tenho estômago para as dinâmicas do marketing tradicional, para essa escalada que leva a um pico de energia e culmina na “abertura de carrinho” ou início de vendas, e porque o processo de criar pensando nas dores de uma persona me desnutre a alma e me esvazia a poesia eu, ao longo dos últimos três anos, desenvolvi um verdadeiro horror à palavra estratégia e tudo que ela implica.
Só que eu estava errada em permitir que um tipo de estratégia, que claramente não funciona para mim, definisse o meu entendimento e a minha relação com aquilo que é uma das habilidades mais perspicazes e necessárias encontradas no Mundo Natural, e que é cuidadosamente desenvolvida e lapidada de forma altamente singular por cada uma das espécies de vida que habitam esse planeta.
No Mundo Natural nada, absolutamente nada, vinga sem estratégia. E como eu e você também somos do Mundo Natural, o nosso caso não é excessão.
Só que uma coisa é entender essa informação objetiva, outra bem diferente é a partir desse entendimento transformar aquilo que era um horror em uma deliciosa aventura cheia de experimentações, tentativas, curiosidade, pertinência, sagacidade e porque não? Deleite.
E é sobre essa irreverente transformação que eu escrevo logo ali, do outro lado da linha que separa o dentro dos arredores do meu cafofo.
E não, a medicina entrelaçada as linhas escritas que seguem não será balsâmica só para quem se dedica a criação de arte e/ou de um negócio e sim para todos aqueles que buscam viver com criatividade encontrando formas múltiplas de fluir em harmonia com a vida se manifestando viva dentro e fora de nós.
Até para isso nós precisamos da tal da Estratégia.
Irônico, não?