Na minha pequenez, oceano-me.
O que terá se tornado possível no mundo por que você e eu existimos criativamente?
Querida Você,
Por acaso, alguma vez ao longo dessa coleção de momentos que você chama de vida, uma frase escrita por outra pessoa aterrissou no seu mundo, fazendo revolução e, num piscar de olhos, organizou o caos de uma crise existencial?
Eu arrisco dizer que sim.
Comigo, isso aconteceu uma única vez, em um Agosto regado a vinho, queijo, baguetes e croissants recém-saídos do forno de uma padaria de esquina, comidos ainda quentes nas primeiras horas da manhã, diariamente, sem nenhuma culpa, apesar da manteiga — e ainda que queijos e vinhos deem um tom invernal a essa memória, não se deixe enganar, a estação era verão e, nos pés, eu usava chinelo Havaiana. E ainda que eu estivesse vivendo uma das experiências mais inesquecíveis que já vivi nesta Europa, algo sobre o qual um dia quiçá eu escreverei, a verdade é que, apesar dessa história se desenrolar na terra alta dos Alpes, minha localização emocional era o mais profundo do fundo do meu poço particular.
Um chá, uma crise e um decreto.
Samoëns, Agosto de 2018.
Bem cheia de poucas coisas, carrego no antebraço esquerdo a cestinha de metal do supermercado. Já passei pela ala das frutas, dos frios, dos pães, dos vinhos e dos chocolates — os essenciais.
Antes de tomar meu rumo em direção ao momento onde a carteira sai da bolsa, o dinheiro sai da carteira e a vida fica mais abundante porque a geladeira está prestes a voltar a estar cheia, decido recalcular a rota e me aventurar na ala dos chás — que, na França, costuma ser o lugar do supermercado onde corremos o risco de passar tanto tempo a ponto de envelhecermos sem perceber. O que também costuma acontecer na ala dos queijos.
Tal qual vinhos e livros, escolho chá pela capa.
E aqui, eu paro para te pedir que não me julgue, pois ao me deixar ser quem eu sou, você se dá permissão para ser quem você é, sabia?
Vou e volto no corredor dos chás, à procura não do melhor, mas o da embalagem mais bonita, secretamente sendo guiada pela mão de Deus, que além de não dar ponto sem nó, costura curas com os fios mais ordinários da vida mundana e não diferencia retiro espiritual de uma trivial ida ao supermercado.
Escolho uma caixinha de chá de verbena com limão, não porque ela seja a mais bela entre as belas, mas porque não é todo dia que encontro, num Carrefour qualquer, chá com meu nome.
Dou-me por satisfeita, ainda desinformada de que, em poucos instantes, minha vida nunca mais será a mesma. Não. Não é exagero, ainda que pareça.
A poucos passos do final dessa ala, de canto de olho, vejo um verde diferente. Antes que a mente verbalize o comando, meus pés param de caminhar. O braço direito se estica, involuntariamente. Ainda sem saber, pego a peça que faltava no quebra-cabeça que, há anos, eu vinha tentando montar sem sucesso. Leio meu nome na caixinha e a frase que, com uma poesia avassaladora, descreve o sabor daquele chá de verbena. Pauso. E o mundo, momentaneamente, decide não girar. A vista embaça, o coração, amargurado pelos anos de frustração e confusão, afrouxa, abrindo uma pequena brecha e, sem saber que havia tanta água de mar represada em mim, viro rios de lágrimas — me oceanando para fora dos anos mais difíceis que até hoje já vivi.
Em meio a uma crise compulsória de choro, decreto: Foda-se!
Foda-se essa história de transição de carreira, essa idéia de que preciso encontrar meu propósito, essa necessidade de ser uma mulher bem-sucedida e dar certo na vida. Foda-se tudo! Eu não preciso ser nada além do que essa caixinha de chá diz que verbenas, inclusive as humanas, naturalmente são.
Enquanto assoo o nariz na barra da camiseta e encho uma outra cestinha com todas as caixinhas disponíveis desse chá de verbena, faço uma nota mental: pedirei aos que ficarem que quando eu morrer escrevam essa frase na minha lápide.
Não me curo em um gole mágico de chá mas começo ali, no encontro com aquela que até hoje é a minha frase de poder, a escalada para fora do poço fundo que a depressão me jogou e de volta à alegria de estar viva sendo quem eu sou.
Un point de douceur dans un monde de brutes.
Durante anos, eu costurei o meu valor ao profissional. E se você acabou de chegar aqui nesse cantinho mais íntimo da Vagarosa que fica protegido pelos contornos da assinatura paga, saiba que eu já escrevi sobre isso aqui.
Encontrar, estampada em uma caixinha de chá a frase “Verbena — um ponto de doçura em um mundo de brutos” foi como receber a permissão que eu há anos buscava para parar de tentar, a todo custo, não só encontrar uma nova profissão, já que bailarina eu não mais desejava ser, mas também ter que voltar a ser uma profissional de sucesso para enfim resgatar o meu valor como pessoa.
Eu agora tinha permissão para ser só um ponto.
Se, em um mundo de brutos, eu vivesse e morresse sendo apenas um ponto de doçura selvagem, já teria cumprido meu papel. Teria existido e, com gestos e palavras faladas, escritas e sentidas, tatuado no mundo a força daquilo que me é natural, tornando-o, sem sombra de dúvida, um lugar muito melhor.
Agora eu podia parar a minha busca.
E enfim, descansar.
Afinal, ser um ponto é fácil.
E por que eu decidi compartilhar essa história e essa minha frase de poder com você, comadre?
Porque a meu ver, pensar na nossa pequenez amplia horizontes. Lembrar que somos todos um mero ponto em um mundo de bilhões nos dá liberdade para nos expressar, fazer arte e até empreender sem nos preocupar tanto com as críticas, opiniões alheias e a forma como aquilo que criamos é recebido pelo mundo.
Afinal, somos só um ponto.
Não é mesmo?
Quando o assunto é criatividade e viver de forma irremediavelmente criativa — que é o tema desse bálsamo aqui que eu sugiro que você leia ou escute antes de mergulhar nas proposições que você encontrará logo ali adiante — mirar nessa pequenez nos possibilita nos abrir para correr mais riscos e mergulhar com irreverência nos processos, feituras e explorações criativas sem nos preocupar com as exigências e expectativas alheias que só servem para nos encher de dúvidas e criar bloqueios que nos paralisam e nos roubam o tesão e a alegria de criar.
Portanto, meu convite hoje para que você é que você se permita oceanar dentro da sua pequenez e para fora das suas preocupações, construir o ninho que protegerá a chama da sua energia criativa — uma das maiores preciosidades que você tem — e redescobrir o prazer de criar por criar.
Bora lá?
com um afeto radical,
Verbena Cartaxo