Dar um ninho a Criatividade
A fragilidade da chama criativa e a rebeldia de ser alguém que a protege com garras e bico.
Por entre as folhas secas de um Outono que chegou antes da hora, eu cisco à procura daquilo que vim garimpar. Orientada pela necessidade do agora, desorganizo a ordem do Mundo Natural, que, de folha em folha, com uma harmonia impecável, faz tapete ao deixar cair seu vestido de veraneio e, vagarosamente, se entrega ao despir invernal — aquele que escancara as forças disfarçadas de fragilidade e revela o nu e cru da resiliência de se mostrar quem se é, sem adornos.
Com meu bico, menos exuberante que o de um tucano e tão habilidoso quanto o de um pássaro tecelão, encontro aquilo que vim buscar; recolho galhos secos, paina, fios de teias de aranha, pelos de bicho caídos pelo caminho, capins e afins e, com pressa, esquecida da minha vagarosidade intencional, arquiteto a solução para o agora.
A chuva chega. Rodeada por um manto de névoa que embaça visões e cega o mundo para todas as outras cores que não o branco denso, que, ainda que úmido, sabe ser menos frio que o branco seco da neve que seca lábios e congela lagos, eu abro as asas e me faço telhado.
Não corro da chuva. Permaneço. Porque enfim aprendi a sustentar o desconforto inicial daquilo que chega para lavar — o corpo, a alma e a aura.
Você que, do seu quintal, no passado, deve ter me avistado passar no céu de batom vermelho, avulsamente empoderada, sendo pássara-solo-sem-bando-pra-chamar-de-seu, ainda não me viu voar com esse meu novo par de liberdades, tecido em nove meses de gestação e algumas poucas semanas de maternar em ação.
Essa é a primeira vez que saio de casa.
As asas que, no passado, só sabiam conjugar o verbo voar agora sabem proteger, aninhar e acalentar, e as pernas sem pelugem e com textura de pele de crocodilo, se comparadas às da neném que agora vive na mesma coordenada geográfica que eu, sem quase sair do lugar, chegam longe.
Mas eu não quero chegar longe.
E, se vamos ser íntimas, isso é algo do qual você precisa saber.
Uma por uma, carrego as preciosidades encontradas pelo caminho, aproveitando para engolir uns pingos de chuva estacionados no chão da mata e matar a sede que amamentar me dá. Habilidosa, dou voltas para não tropeçar nas raízes extrovertidas que se recusam a crescer dentro da terra — o lugar escurinho, morada dos mais introspectivos e sensíveis à extravagância solar — e não deixar cair aqui aquilo que precisa estar allá,
no lugar onde construirei meu ninho criativo.
Há alguns tantos anos, mais de dez para não ser exata, caminhando descalça os quilômetros e quilômetros e quilômetros de areia que nos levam de Caraíva até a Ponta do Corumbau eu, distraída do presente e geograficamente mais nas nuvens que no sul da Bahia, tropecei em um ninho de passarinho destinado a ser engolido pelo mar.
Na mochila, aquela eu mais jovem carregava uma única muda de roupa, um caderno, uma caneta, um telefone desprovido de tecnologias e da habilidade de me conectar ao mundo, uma garrafa d’agua e meia dúzia de bananas da terra sendo cozidas sob a extravagância solar de um Janeiro inesquecível — feito dos 31 dias necessários para aterrar, enraizar na urgência de voltar a ser feliz e, com o corpo a alma o intelecto e o espírito, alcançar o entendimento de que eu precisava parar de ser a mulher que eu tinha me acostumado a ser.
Alguém que teme escutar a própria voz.
E que não sabe falar o que sente.
Em Caraíva, embreagada de copos de choro misturados a uma única cerveja eu escrevi a minha primeira palavra sentida; sentada na beira do mar, puxei um fio de uma rede de pesca abandonada e comecei a costurar minha poética. De Caraíva, a bordo de uma canoa roubada, eu remei de volta até as montanhas de Minas Gerais para fazer minha mala pegar minha cuia e com o pouco que havia sobrado de uma vida desmoronada por um divórcio 7.9 na escala Richter, cruzar o Atlântico até atracar na Irlanda — o lugar onde eu até hoje faço morada.
Foi na Bahia que eu entendi que para ser feliz eu precisaria primeiro desengasgar.
Foi ao incansavelmente escrever minhas vísceras até conhecer o material bruto da qual a minha metade selvagem inlapidável é feita que eu aprendi a falar a partir do sentir e não só do pensar.
E foi, ao enfim conseguir dar voz aos meus engasgos e desassossegos e sustentar minhas opiniões mais sinceras e íntimas que eu descobri o quão desafiador é, com o passar do tempo e o embolar de novas crises, não deixar de se escutar e passar a ser mero eco daquilo que já está sendo dito, escrito e criativamente criado.
Algo pro qual só existe um único antídoto.
Pelo menos que eu saiba.
Uma chama, embora tenha o potencial de incendiar uma floresta inteira, pode ser apagada com um sopro.
Se não for cuidada — e só se não for cuidada.
Recolher galhos secos, paina, fios de teias de aranha, pelos de bicho caídos pelo caminho, capins e afins e, feito pássaro, dar à criatividade um ninho, protegendo com unhas e dentes garras e bico a vitalidade que ativa a necessidade de criar e criativamente expressar engasgos, desejos, sonhos e desassossegos é o meu antídoto contra os sopros, ventos contrários e mares revoltos que, de tempos em tempos, tentam me engolir.
Levantar paredes que me protejam contra a interferência de ruídos, das opiniões alheias e das críticas internas e externas não requisitadas, que têm o poder de corroer a minha confiança no caos do processo criativo e na feitura lenta da atividade de artesanalmente criar, é a forma que eu encontrei para não deixar de diariamente pousar caneta no papel e, com palavras, construir o mundo onde ora eu posso ser mulher, ora eu posso ser pássaro.
Ainda que seja chamada de força criativa, em tempos de hiperconexão e hiperexposição, toda força é um tanto frágil — porque toda força está à mercê de comparações e expectativas que não conhecem limites.
A importância de voltarmos ao lugar de onde começamos.
De tempos em tempos, eu abro aquele caderno, subo na canoa até hoje atracada em terras vikings e volto para Caraíva para relembrar o que me levou a sentar sozinha em uma mesa de bar, pedir uma cerveja e, entre copos de choro, começar a escrever a história da mulher desengasgada que eu viria a ser uma vez que aqueles trinta e um dias chegassem ao fim.
De tempos em tempos, eu puxo a linha da costura só para chegar ao começo da história que está sendo vivida — o ponto de partida onde a realidade de agora era apenas uma delicada chama com potencial para vir a ser o que hoje é.
De tempos em tempos, eu me pergunto por que decidi começar? Qual foi o impulso que me fez dar o primeiro passo? Qual foi a faísca que me acendeu a chama que me incendiou de tesão pela criação? O que existia antes de qualquer comparação ou expectativa entrar no meu caminho e, feito névoa em manhã chuvosa, me embaçar o horizonte e me fazer me perder dos meus motivos?
As perguntas variam.
A resposta é sempre a mesma.
No início, havia prazer em fazer por fazer.
Prazer em tentar.
Em arriscar.
Em criar por criar.
Prazer em ser.
Em se deixar pelo acaso surpreender
e, pelas surpresas do processo, se transformar.
Quando o ninho de folhas secas está pronto, é isso que protejo no seu aconchego — o prazer de criativamente criar sem ter um lugar longe para chegar ou um alguém para impressionar.
Com um afeto radical,
Verbena Cartaxo
Dentro da Prosa.
Se as palavras costuradas neste bálsamo pousaram no seu mundo como faíscas, acendendo chamas e gerando movimentos sutis nas suas paisagens internas, quero te convidar a se juntar a mim e as mulheres da Prosa — a comunidade de leitoras e escritoras irremediavelmente criativas, que floresce na intimidade da assinatura paga desse cafofo.
Na Prosa, vamos além das palavras e transformamos o que foi despertado pela leitura ou escuta dos bálsamos que eu artesanalmente costuro, em pequenas ações concretas, capazes de te tirar do círculo vicioso das reflexões que não saem do plano mental e te ancorar no Corpo — o lugar onde reflexões se entrelaçam a emoções, intuições e sensações para serem integradas, revelando novas perspectivas e possibilidades e criando um lugar seguro para se estar sempre que a maré sobe e o mar-mental parece que vai nos engolir.
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Saiba que será um deleite e uma verdadeira honra te receber nesse cantinho mais íntimo da Vagarosa, trocar experiências, derramar minha medicina em doses abundantes no seu mundo e facilitar sua jornada de retorno às terras radicalmente férteis do selvagem território Corpo.
Te espero do lado de dentro.
v.
Quem te escreve?
Verbena Cartaxo é costureira de palavras, alquimista dos sentidos, ex-bailarina, eterna mulher movimento, mãe de uma neném de olhos azuis, metade brasileira, metade polonesa, que há poucas semanas saiu do forninho; dona de casa que se recusa a usar aspiradores de pó e voa de vassoura; capitã da Prosa e a mulher intencionalmente desacelerada que jardina as terras férteis da Vagarosa — uma publicação patrocinada por suas leitoras. Desde 2019, publica sua escrita de forma independente, facilita vivências com foco no despertar da sabedoria do Corpo e guia mulheres ao redor do mundo de volta ao abraço-casa de suas Naturezas Selvagens.
🤫 Não conta pra ninguém, mas tenho vivido um momento de refletir e repensar para enfim decidir se vou ou não escolher maternar nessa vida. E mesmo que muitas vezes vc não fale diretamente sobre isso, seus textos me tocam nesse momento.
Ouvir seu áudio com som de um bebê me fez te admirar ainda mais e refletir o quanto é possível continuar sonhando, realizando e criando com tanta qualidade. 💚
estava aqui refletindo sobre minhas criações porque ando numa pequena crise de identidade com elas (principalmente as que habitam aquela outra rede haha). abro seu texto e me deparo com o antídoto. afff, eu amo as sincronias da vida!