Cartas para te impulsionar
Uma série de quatro cartas concebidas como bálsamos para nutrir o corpo, a alma, a escrita e a criação artística em tempos desafiadores. Esta segunda carta é um convite para parar de idealizar o cenário perfeito e, em vez disso, abraçar as oportunidades de criação que já existem ao seu redor. Que ela sirva de impulso para você descobrir, dentro da sua rotina, as brechas por onde uma criatividade esvaziada de exigências florescerá selvagem.
Boa leitura!
« Cartas para te impulsionar ______ vol 1
Faça arte como uma mãe sem tempo
por Verbena Cartaxo
Tal qual uma adolescente — a quem foi negada a possibilidade de ir numa festa que “todo mundo vai” com um monossílabo Não! seguido daquele retórico super trunfo materno Você não é todo mundo, é? — bato, ao invés da porta do quarto, a tela do laptop fechando-o com raiva.
É a quinta manhã que não consigo avançar na construção de nenhum dos textos que me esperam no banco dos reservas, ingenuamente ansiando pela substituição que lhes abrirá as portas pro sonho de mostrar seu valor e a que vieram.
Minha mãe tinha razão:
não era (e sigo não sendo) todo mundo.
O que sou é só mais uma escritora com filho pequeno que não consegue escrever mais de meia dúzia de frases sem ser interrompida.
Dessa vez sucumbo ao amargor da raiva, a frustração da não fluidez, ao medo quase desesperador de perder a palavra perfeita e o fio de um pensamento que, me segurando pelas mãos, promete me levar a um novo lugar ainda não tateado pela minha escrita. Medo de perder o oportuno timing, de chegar ao Domingo-dia-de-publicar de mãos vazias, de nunca mais ser capaz de submergir por inteiro, pés peito corpo cabeça e espírito, nas águas profundas do processo criativo acessando aquelas camadas mais sutis e nada óbvias que demandam atenção não fragmentada.
Raiva, medo, frustração e arrependimento.
Dessa vez não assustei a pequena com minha adolescencisse, mas se numa dessas quebro a tela do laptop, estarei oficialmente impossibilitada de trabalhar, além de belamente fundida (deixarei a versão que o corredor entendeu como mais propícia, para não horrorizar minha prosa nada recatada, mas que não vê palavrão com bons olhos.)
Uma parte minha, aquela artista patologicamente obsessiva, que ao entrar num processo criativo não saía dele nem para desfrutar de uma refeição nutritiva — que é o que possibilitaria a continuidade das sinapses — e se contentava com pão com queijo ou macarrão com pesto de supermercado por dias, essa parte, ainda acredita que preciso de silêncio absoluto, uma escrivaninha, um algo gostoso em mãos, a visita da Nossa Senhora Nem Sempre Aparecida Inspiração e horas à fio ao seu dispor para trazer ao mundo a escrita malemolente, virginianamente lapidada, no detalhe, palavra por palavra, que ela aceita assinar em baixo.
Essa artista é justamente quem não conseguia se imaginar mãe. Era ela quem acreditava que estaria perdendo sua liberdade e que a maternidade lhe roubaria a possibilidade de se entregar àquilo que lhe dava mais prazer — o ato rebelde de criar.
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O barulho contínuo da máquina de lavar no ciclo final preenche a casa com o som do mais mundano da vida acontecendo. A luz da manhã entra pela porta de vidro da sala, iluminando o chão de taco com alguns brinquedos espalhados. A pequena coça os olhos com as costas da mão, num gesto conhecido que anuncia sono, e, com resmungos que com o passar dos minutos ganham notas de choro, pede colo.
Ao abaixar o sutiã oferecendo o tetê-ponte-pra-terra-dos-sonhos, respiro fundo numa tentativa bem sucedida de dissipar a frustração para entrar inteira no lugar de corpo alimento corpo acalento.
Solto a mão da palavra perfeita.
Assisto uma frase inteira virar fumaça.
Trocamos um último olhar antes das pálpebras pesadas cederem ao sono e sou acometida por um choro que, ao embaçar a vista, traz uma clareza tão ou mais impetuosa que o fechar brusco do laptop.
“Não é mais assim que você cria, filha” — escuto a Velha me dizer.
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Há um outro tipo de potência criativa — uma força feminina, ancestral, que não caminha em linha reta e não segue cronogramas, metas mensais e produtividade com hora e dia marcados. A mulher cria em círculos, ciclos, espirais e repetições que jamais são idênticas. E é exatamente por isso que costumamos nos sentir deslocadas na lógica da produtividade clássica, aquela que força uma rotina linear, retilínea, bem típica da estrutura produtivista patriarcal: entrar no trabalho, cumprir horas, manter produtividade constante, entregar resultados quantificáveis e imediatos, competir, subir na hierarquia, repetir. Esse modelo que desconsidera os ciclos do corpo, a fluidez do tempo subjetivo e as pausas que também são partes fundamentais do processo, nasceu de um sistema pós Revolução Industrial que nos trata como se fôssemos máquinas.
Antes desse marco histórico, o trabalho era, em grande parte, uma extensão dos ciclos naturais da vida: o nascer e o pôr do sol, as estações, o tempo da colheita e da semeadura, o movimento das marés, os ciclos menstruais e de gestação, a construção de laços, a convivência familiar, as pausas para a partilha e para o descanso. Mas a partir do momento em que as fábricas começaram a tomar o lugar das terras e dos espaços de convívio comunitário, o tempo, a energia e o corpo passaram a ser moldados para se ajustarem a um ritmo de produção incessante. O trabalho passou a ser medido pela quantidade e velocidade, e não pela qualidade ou pelos ritmos naturais que, até então, eram tidos como legítimos.
Esse sistema não apenas desconsiderou os ciclos do corpo, mas também obteve sucesso em invisibilizar a natureza cíclica da própria criação, transformando tudo que é orgânico e fluido em algo passível de ser controlado, segmentado e quantificado. As pausas — momentos essenciais de digestão e reflexão — foram ignoradas em favor de uma produtividade desprovida de humanidade.
A rotina dentro de casa, antes por mim vista como monótona, agora começa a revelar sua lógica bastante subversiva. É no vai e vem entre as tarefas domésticas e no cuidado do meu bem mais precioso que brota uma criatividade encarnada que não vem com hora marcada, quando estou sentada na minha escrivaninha — que já nem existe mais.
Enquanto balanço a Vicky no colo, fermento ideias junto com o pão que estou aprendendo a fazer — não porque é moda no TikTok, mas porque, num tempo onde o custo de vida sobe de forma meteórica, fazer o próprio pão de fermentação natural é infinitamente mais barato do que comprar pronto. Enquanto troco a fralda, sou atravessada por uma nova palavra que estava fora do meu vocabulário cotidiano. Enquanto mexo a panela no fogo, uma ideia nova brota — inclusive, foi descascando batatas que o Atlas das Mães que Escrevem no Substack nasceu.
Essa criação fragmentada, que acontece nas brechas entre uma coisa e outra, longe de me afastar da arte, me aproxima de sua feitura artesanal, ao me retirar da idealização de um cenário perfeito — uma idealização que, junto à auto-sabotagem, é uma das principais responsáveis por paralisar o impulso radicalmente criativo de nos expressarmos.
Existe, sim, uma sabedoria ancestral nessa dança — uma lógica circular que não apenas reconhece, mas acolhe como parte essencial do processo as pausas, as interrupções, os retornos, as voltas e os ciclos. Assim como o corpo da mulher e a própria natureza, essa forma de criação compreende que são justamente esses intervalos que conferem profundidade e camadas àquilo que se cria. Porque é no tempo estendido, no espaço entre uma demanda e outra, que a obra respira, se assenta e se deixa atravessar pelas múltiplas nuances da vida em curso.
Fazer arte como uma mãe sem tempo é entender que a fluidez criativa não reside na disponibilidade de horas vagas, mas na presença radical com a vida cotidiana tal qual ela se apresenta — usando cada pequena brecha, dançando com os imprevistos e com os compromissos que não podem ser adiados ou evitados. Criar não precisa depender da imersão ritualística em um silêncio sagrado. Pode acontecer na frase interrompida, na atenção dividida, nas pausas imprevistas e até nos parágrafos inteiros que se perdem e nunca mais voltam. Com um filho, o trabalho que paga as contas, ou qualquer outra demanda exigindo presença — na anca, engatinhando por entre as pernas, sentada no colo, nos arredores, enquanto cozinhamos, empurramos um carrinho ou dobramos pilhas e pilhas de roupas — é possível fazer, sim, a melhor e mais revolucionária arte que já se fez. Uma arte esvaziada de exigências que anda de mãos dadas com a imperfeição do momento presente — o único tempo que nos é garantido ter.
Com um afeto radical,
para você que neste santuário escolhe estar.
Verbena Cartaxo
Enquanto isso no Lustre do Castelo na Comadreria..
Enquanto eu trabalhava nesta edição da Vagarosa, uma bela conversa foi sendo costurada lá na Comadreria. Quem puxou o fio de prosa foi a querida
, com a pergunta “Quando escrever?” — como encontrar tempo para pingar palavra no papel quando se tem filho pequeno, casa para cuidar e compromissos de trabalho? A partir dessa primeira mensagem, uma troca riquíssima e cheia de afeto se desenrolou entre as comadres: cada uma trazendo sua experiência, ideias e estratégias para lidar com esse desafio tão comum entre mães que escrevem.Novas leituras surgiram e textos escritos em outros carnavais pelas mulheres da Comadreria — que dialogam com o tema dessa segunda carta — foram compartilhados lá no nosso chat que, dizem por aí, é o melhor chat do Substack inteiro.
Deixo aqui essa riqueza de material como um desdobramento afetivo da edição de hoje, para inspirar, acolher e impulsionar novas trocas.
Desfrute da escrita das comadres.
Mãe de Dois - uma nova realidade por
Comer, dormir e escrever - à prestação por
— leitura sugerida pela querida Mari.Deixo aqui também uma costura de ideias preciosíssima feita pela querida
— outra comadre. Precisamos nos desculpar porque mudamos? não fala da falta de tempo, e sim do passar dele. Algo sobre o qual a Paola, aquela que começou o fio de prosa lá no nosso chat, também escreveu aqui.
Clareira
Minha agenda está oficialmente aberta — e resta uma última vaga para a primeira rodada da Clareira, uma consultoria individual em quatro encontros para quem já publica no Substack e sente que é hora de clarear a visão, afinar os elementos estruturais da publicação e potencializar voz e presença.
A proposta é mergulhar juntas no seu momento atual, entender o que você deseja criar e viver nessa nova temporada, e alinhar cada ponto de contato com quem te lê. Vamos re-imaginar a sua publicação como uma experiência integrada, reorganizar o acervo, resgatando e dando nova vida às pérolas que já foram criadas, e explorar os bastidores da plataforma para mapear o comportamento dos seus leitores — tudo com estratégia, escuta, muita irreverência e criatividade.
A ideia é transformar seu cantinho no Substack em uma plataforma autoral de expressão livre, intencional e sustentável a longo prazo.
Todas as informações sobre a Clareira estão aqui.
E se você está apenas começando (ou se preparando para começar), talvez o Clareira Pocket seja o ponto de partida ideal. A ideia não é prever o destino final ou se engessar em um formato rígido, mas sim preparar o terreno para que a sua publicação nasça com coesão, personalidade, direção e contornos fluídos — que convidam à experimentação.
Saiba mais sobre o Clareira Pocket, aqui.
Até Domingo que vem!
v.
salvar esse texto para que ele me salve um dia❤️🔥 eu tô na Clareira, gente! e vou me exibir mesmo porque tô me achando chique demais hahaha
Quanto valor, quanto amor nessas palavras, nesse compartilhar, que me abraça desse lado do oceano, tão perdida em um descarrilhar do trem do processo criativo (da vida!). Sempre tão bom te ler! ♥️