Cartas para te impulsionar
Uma série de quatro cartas concebidas como bálsamos para nutrir o corpo, a alma, a escrita e a criação artística em tempos desafiadores. Esta primeira é um convite para se entregar à escrita com audácia e sem pedir permissão. Que ela sirva de impulso para você se expressar de forma autêntica, ocupar o seu lugar na roda e se render ao desdobrar criativo do seu próprio vir-a-ser.
Boa leitura!
Escrever requer audácia e não credenciais
por Verbena Cartaxo
Tal qual feijõezinhos,
existem histórias de todos os sabores.
Hoje, nessa noite de eclipse, em que o véu entre mundos tende a se tornar um tanto mais fino e paira no ar a possibilidade de re-escrever destinos, decido tirar do bolso um feijãozinho com gosto de chá de boldo concentrado misturado com borra de café de três antônte e arroto de morcego compadecido de azia crônica.
Já o coloquei na boca e cuspi mais vezes do que gosto de admitir. Admito.
Já tentei engolir no seco.
Digerir.
Primeiro com água,
depois com um Talisker envelhecido.
Curar.
Transmutar.
Abandonar.
Entregar para Iemanjá num dois de fevereiro.
Já tentei até presentear, com um desafeto radical, aqueles que me plagiam — que tentam pegar um atalho, roubando o que é autêntico, na esperança de fugir da parte custosa do processo.
Nada funcionou.
Então agora, depois de anos carregando esse pedregulho no peito, só me resta escrever o amargor dando-lhe asas para que — nessa noite ariana de Eclipse, onde a questão não é se o renascimento acontecerá, mas quão conscientemente cada um de nós participará da sua própria transformação — ele se faça Fênix.
//
A escrita tanto dá quanto tira força daquilo que faz morada nas entranhas. E isso, pasme, não foi nenhum escritor famoso que falou; foi o espírito da Escrita em carne e osso — aquele que cada um de nós encontra para um café com prosa quando senta a bunda na cadeira e se propõe a imprimir na matéria as idéias desprovidas de corpo que vagam soltas no inconsciente coletivo, em busca da formiguinha operária formada em obcecada por letras que traduzirá incômodo em palavras.
Não é fácil ser essa formiguinha.
Tampouco é difícil.
Mas requer audácia.
Não para escrever o que bem entende, e sim para nem sempre entender o que bem escreve — e seguir escrevendo, mesmo assim. Sem dar ouvidos às vozes que, repetidamente, dirão que essa coisa de ser escritora não é para você porque você:
não tem esse ou aquele diploma;
não tem livro publicado;
não domina as regras que regem o português;
não tem x seguidores;
não tem y leitores;
não trabalha com escrita;
não paga as contas com escrita;
não ganhou prêmio algum;
nem concorreu;
nunca participou de um edital;
nunca pisou na FLIP;
nunca sentou em mesa;
não está na roda.
E, no entanto, escreve.
Traduzindo incômodo parado num nó de tripa qualquer, em palavras.
Mudando, sem saber e sem querer,
o rumo da própria vida —
uma crase no lugar errado por vez1
//
Eu sei que você sabe que eu sei que você sabe que eu sou Escritora. O que você não sabe é que, além de escrever obsessivamente — tragando sílabas como se fossem moléculas de oxigênio — não tenho nenhuma outra razão para me autointitular assim. Não sou, não fui, não fiz e não tenho nenhuma das credenciais que costumam definir um escritor. Exceto pelos leitores.
Esses, graças a você e a essa plataforma que, por hora, ainda é um cantinho que faz muito sentido estar, eu tenho. Mas não são tantos assim.
Depois de uma vida me expressando através da dança, quando abandonei a carreira de bailarina e vim colar meu coração partido em terras Vikings, bem longe de Minas Gerais, começando aquilo que seria a mais longa e angustiante transição de carreira que já se deu notícias, foi a Escrita quem me impediu de afogar na minha própria insegurança. Ao escrever, tentando entender em que curva fechada eu tinha deixado minha autoconfiança e determinação capotarem dando perda total no veículo, é que eu me dei conta de que tinha opinião própria sobre coisas perante as quais, no passado, eu teria permanecido calada. Ao cavucar o mundo interior, me educando no bê-a-bá dos meus sentimentos labirínticos, lembrei que, um dia, ainda menina, soube fazer poesia. Meus primeiros escritos, enquanto mulher adulta, foram versinhos. Ao final de longos meses, quando um primeiro caderno se encheu de poesia, decidi ler um dos meus poemas em voz alta, de frente para a câmera, e soltar na internet um videozinho tímido. Ao assisti-lo, depois de já publicado, descobri que gostava do som da minha voz e que concordava — e assinava embaixo — daquilo que, através da escrita, e só através dela, eu conseguia expressar.
Por anos, fui escritora de legenda de post de Instagram e só. Foi lá, inclusive, que descobri que as palavras que eu costurava, ainda que espremidas para caber num espaço ridiculamente apertado, ressoavam em outros peitos que não só o meu e ajudavam muita gente a entender e nomear o que só sabiam sentir.
Foi escrevendo legenda de post que descobri que sabia escrever. E foi honrando o meu caminho não convencional que percebi que, enquanto esperarmos o aval de alguém para acreditar na potência daquilo que desejamos colocar no mundo, seguiremos jogando contra o nosso próprio time e nos roubando a possibilidade de criar algo verdadeiramente genuíno.
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Não escrevo profissionalmente (não sou paga para escrever), mas também não escrevo só por hobby. Posso ter a petulância de me dizer Escritora?
Uns te dirão que sim.
Outros te dirão que não.
O que eu te digo é: não gaste uma única grama da sua energia vital questionando a validade de suas credenciais ou a falta delas. Ocupe-se em escrever, aprimorar sua técnica quando o desejo aparecer, transformar sua escrita em algo único — algo que só você pode alquimizar. Escreva sobre o que acende sua alma, mesmo que não seja o assunto do momento, e, principalmente se não for o assunto do momento. Trabalhe artesanalmente, dê a si mesmo tempo, não se compare com outras pessoas e não busque validação. Quando o reconhecimento vier, celebre.
Enquanto ele não vier, lembre do porquê você escreve e continue escrevendo — obsessivamente.
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De pés descalços, adentro a mata.
A um metro do lugar onde plantei a placenta da Vicky, planto meu pedregulho disfarçado de feijãozinho sabor amargor. Mudar de profissão não foi leve; nasci num planeta que não entende a mudança de rota, não valoriza a dúvida e não acolhe quem, ao se perder, não se (re)encontra imediatamente. Isso será, certamente, algo que precisarei ensinar para minha filha, para que ela, ao repensar escolhas, não o faça de chicote em mãos.
Finalmente entendo que, ao transicionar de um lugar para outro, não abandonamos aquilo que fomos. Tudo o que vivemos continua existindo dentro de nós, transformado, ressignificado, costurado à nova pele que passamos a habitar.
Nada se começa do zero. Nada se finda por completo. Cada passo adiante carrega as pegadas que ficaram para trás, não como peso, mas como fundação. O que fomos é a matéria-prima que nutre e sustenta o que estamos nos tornando. A vida não é uma sucessão de recomeços e páginas em branco, mas um fluxo contínuo de criação, reinvenção e evolução. Viver é um eterno devir criativo, quer a gente queira, quer não.
Com um afeto radical,
para você que neste santuário escolhe estar.
Verbena Cartaxo
Por acaso você?
Escreve, cria, imagina mundos e possibilidades, mas sente que, às vezes, as palavras e a sua criatividade ficam presas? Como se histórias e impulsos dentro de você quisessem sair, mas algo — insegurança, perfeccionismo, desconexão com o corpo — travasse o fluxo?
Ou talvez, no meio das demandas do trabalho, dos filhos, da vida que pulsa para fora, você sinta que algo essencial ficou para trás. Sua criatividade, sua sensualidade, sua expressão mais autêntica querendo respirar de novo.
Ou quem sabe você perceba a escrita e o movimento como portais. Algo sagrado, intuitivo. E esteja buscando um espaço para explorar isso sem pressa, sem rigidez, guiada por uma condução que nutre, acolhe e, ao mesmo tempo, instiga?
Se algo disso ressoa, saiba que a assinatura paga da Vagarosa voltará em breve.
Esse santuário de criação lenta foi cuidadosamente repensado. Dentro dele, assinantes terão acesso a textos, áudios, práticas e experiências que vão além da palavra escrita — atravessando o corpo, os sentidos, a intuição e convidando ao movimento. Um espaço para dar vazão ao oceano que existe dentro, reencontrar o fluxo criativo e permitir que a sua expressão selvagem floresça, com presença e prazer.
Em breve, te conto mais.
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Nota de Esclarecimento
Em tempos de tantos dedos apontados e tanta toxidade, quero deixar bem claro: este texto não é uma alfinetada em quem tem este ou aquele diploma, livro publicado, domínio das regras que regem o português, x seguidores, y leitores, contas pagas com escrita, prêmios, indicações, participação em editais, presença na FLIP, lugar em mesa ou nome na roda. Pelo contrário — vocês têm não só o meu respeito, mas também minha enorme admiração.
Esta é, acima de tudo, uma carta de incentivo para aqueles que, justamente por não terem nada disso, se sente pequenos, desimportantes e desencorajados a colocar sua escrita no mundo. Há muita gente já reconhecida e prestigiada chegando por aqui, e isso é maravilhoso! Ainda assim, esta continua sendo uma plataforma incrível para quem está começando ou construindo, tijolinho por tijolinho, um santuário para chamar de seu.
que todo mundo que quer escrever tenha sempre isso em mente: não é preciso qualquer validação para escrever, apenas a própria vontade. os textos sempre encontram seus leitores.
Estou completamente emocionada com cada frase que li. Quanta alma tem nesse texto!