Uma ode à Desobediência
Contra todas as proibições, ela olha. Através de todo o medo, ela vê.
É atribuída à curiosidade feminina uma conotação negativa, enquanto a masculina é chamada de curiosidade investigativa. As mulheres são abelhudas, fofoqueiras, enquanto os homens são indagadores. Na realidade, a trivialização dessa curiosidade inata, representa uma negação do insight, da intuição e dos pressentimentos das mulheres. Ela nega todos os seus sentidos. Ela tenta atacar sua força fundamental.1
Mas o que acontece quando essa força resiste?
Quando, ainda que desacreditada, a curiosidade insiste em abrir portas, seguir rastros, perguntar — mesmo o que não deveria ser perguntado? Clarissa Pinkola Estés, em Mulheres que Correm com os Lobos, resgata esse movimento de desobediência vital através do conto do Barba Azul, onde a curiosidade da protagonista é justamente o que a salva. Contra todas as proibições, ela olha. Através de todo o medo, ela vê.
É nesse mesmo espírito que a história que segue foi escrita. Um fragmento da infância, um percurso através de portas e passagens secretas — reais e simbólicas — que se entrelaça com o conto ancestral. Um convite para escutar o chamado da intuição, da pergunta insistente, da chave que não quer silenciar no fundo do bolso.
A curiosidade aqui não é um defeito: é um portal.
Hoje, nesta edição mais que especial da Vagarosa, celebramos a Clareira que eu e Patrícia abrimos juntas — espaço de expansão, transformação e movimentos irreverentes. Com o coração transbordante de alegria, deixo vocês com ela: Paty, a alma que pulsa por trás da Curiosa, a escritora que transforma perguntas em chaves que abrem caminhos. Boa leitura!
Com um afeto radical,
Verbena Cartaxo
Uma ode à Desobediência
por
Uma das coisas que eu mais gostava quando criança era dos finais de ano, dos dezembros quando, eu, meus pais e minhas irmãs, viajávamos num Chevette marrom antigo, de Brasília até Lages em Santa Catarina. Eram dois dias inteirinhos de estrada para ir passar Natal com a família. Tínhamos até um colchão cortado especialmente para transformar o banco de trás em cama. Colocávamos malas onde se colocam os pés e, com o colchão em cima das malas e do banco, éramos acolhidas pelo divã que abrigava três meninas cheias de vontade de encher a pança de sagú com merengue e de figo em calda na companhia de quase uma dúzia de primos.
Esses doces — que só de lembrar já me fazem salivar — eram preparados com calma e muito amor por um certo casal de cabelos brancos pelo qual eu era com-ple-ta-men-te apaixonada.
Meu avô era míudo e fazia o melhor bolinho de chuva que eu já comi na vida, já minha avó, um pouco mais velha e bem mais alta que ele, era quem costurava as roupinhas das minhas Barbies e dava o melhor colo do mundo.
Uma das coisas que eu, minhas irmãs e nossos primos mais gostávamos de fazer na casa da vó e do vô, era brincar com os mistérios das portinhas que havia em alguns cômodos, e que nós acreditávamos serem passagens secretas. Elas iam de quarto em quarto — assim pensávamos nós — e abrigavam um alguém que não se deixava ser notado mas que dava nota de tudo que acontecia pela casa.
Essas pequenas portas chaveadas despertavam nossa curiosidade de um modo quase que incontrolável, além de, claro, nos darem medo.
Só que esse medo era diferente dos outros que tínhamos. Não era um medo do escuro ou de monstros inventados. Era um medo que se misturava com uma grande vontade de exploração, um friozinho que percorria o corpo quando caminhávamos por aquele chão de madeira escura, buscando descobrir para onde aquelas passagens secretas iriam nos levar caso abríssemos cada portinha. Nós nos cutucávamos, olhávamos uns pros outros, sussurrávamos baixinho para não sermos ouvidos pelo tal alguém e fazíamos desse encontro com os mistérios da casa, o assunto principal das nossas sérias conversas de criança.
Abrir aquelas portas era um chamado.
E naquele chamado, algo nos dizia:
“Vem ver, mesmo que você não saiba o que vai encontrar. Mesmo que seja perigoso. Vem!”
Hoje, olhando pra trás, eu vejo que era uma força inata que estava ali, borbulhando viva, em cada um de nós. Pois é ela, a Curiosidade, quem chama desse jeito que arrepia, quem nos desafia a espiar o que há logo ali do lado de lá, quem sussurra um “vem” instintivo e quem, sem sombra de dúvida, mantém a Alma desperta.
//
Eu me lembrei dessa história logo após reler o conto do Barba Azul, de Mulheres que Correm com os Lobos. Se você nunca leu, bem resumidamente, o conto fala sobre uma jovem — a mais nova de três irmãs — que, mesmo com um pressentimento de que algo não estava certo, se casa com um homem poderoso, misterioso e estranho. Um dia, ele precisa se ausentar e entrega a ela um molho com todas as chaves do castelo. No meio delas, há uma chave minúscula, que ele a proíbe expressamente de usar.
Curiosas, ela e as irmãs começam a explorar o castelo, abrindo porta por porta, usando chave por chave, fascinadas pelos aposentos e descobertas. Até que, já no porão, escutam ao longe o rangir de uma porta se fechando. Correm na direção do som — e se deparam com uma porta pequena, trancada, diferente de todas as outras.
Param diante dela e intuem, quase ao mesmo tempo, que aquela deve ser a porta proibida — e que a chavezinha, até então guardada, provavelmente foi feita para ela.
A curiosidade lateja.
Ao girarem a chave, a porta se entreabre revelando um aposento escuro onde jazem os restos dos corpos das esposas anteriores de Barba Azul. Assustadas, elas fecham a porta de uma vez — mas já é tarde. A chave, ainda em mãos, começa a verter sangue sem parar, expondo o segredo que deveria permanecer trancado. Desesperada, a jovem tenta limpar, esfregar, secar com cinzas — mas nada detém o sangramento.
Ao retornar, Barba Azul descobre a desobediência da esposa. Furioso, anuncia que ela terá o mesmo destino das outras. Mas a jovem, em vez de se calar ou se resignar, ganha tempo com astúcia. Chama pelas irmãs, que por sua vez convocam os irmãos. E é essa união — entre astúcia, coragem e afeto — que a salva, no último instante, das mãos do predador.
Esse conto é um retrato simbólico do que acontece quando ignoramos a nossa intuição — e também do que acontece quando finalmente escolhemos escutá-la.
O Barba Azul, como Clarissa descreve, representa o predador natural da psique: uma força interna que deseja calar a mulher instintiva, que tenta silenciar aquilo em nós que fareja, pressente, sente e percebe. É essa força que nos convida a viver bonitinho, mesmo que esse bonitinho nos custe a vitalidade e a pulsão criativa. O predador diz que o que queremos é um exagero, que não é a hora certa, que é melhor nem tentar, e não ir atrás de descobrir a verdade.
Mas uma hora a gente decide desobedecer.
Uma hora a gente abre a porta e vê.
Descemos ao porão da alma para encontrar, empilhadas, as nossas partes que foram silenciadas. As ideias que deixamos morrer. As escolhas que fizemos que iam contra aquilo que sentíamos e intuíamos ser o melhor caminho. As versões de nós mesmas que imploravam por vida, mas foram empurradas para o fundo do armário por medo, obediência e ingenuidade.
A chave sangra porque o que está encarcerado está em sofrimento.
A vida ali foi sufocada, e isso dói.
Ô se dói.
Mas entrar em contato com essa visão — mesmo que difícil — nos desperta para a lembrança desse instinto de farejar, de descobrir o que mais há: aromas, lugares, possibilidades, gostos, gozos, pessoas e experiências.
A curiosidade nos reconecta com o pulsar da vida, nos força a olhar para o que está escondido — porque o que está atrás da porta, por mais assustador que seja, carrega pistas. E cada uma destas pistas nos reconecta com a nossa natureza instintiva inata, o Eu Selvagem.
E aquelas portinhas na casa dos meus avós, aquelas que eu tanto queria saber o que havia por de trás, lembra? Elas seguem se apresentando para mim, para você, para todas nós — ao longo de toda a nossa vida.
Algumas parecem até ter placas de neon piscando, outras já são um tanto mais discretas e há também aquelas que, por mais visíveis que sejam, nós nos recusamos a ver. Mas elas estão sempre ali e a nossa Curiosidade (que além de Curiosa é também Atrevida) — linguagem da intuição e do faro instintivo — por mais encarcerada que esteja e difamada que seja, nunca se deixa silenciar por completo. Não importa o quão alto sejam os ruídos em que estivermos imersas, ou quão terrível for o predador que nos espreita, a Curiosidade segue nos chamando para que façamos o movimento de abrir a porta. Nos convidando a desobedecer.
//
A menina deitada no banco de trás daquele Chevette marrom, embalada pelas curvas e retas de uma longa estrada com cheiro de sagú e figo, vem hoje nos dizer — a você e a mim — que absolutamente todas as portas, perguntas e possibilidades que despertam esse tipo de arrepio, que percorre o corpo e nos acendem por dentro, precisam ser abertas. Porque quando o corpo arrepia, é sinal de que a alma selvagem está farejando o caminho. É ela quem sussurra: “É por aqui.” Mesmo que isso assuste. Mesmo que doa um pouco. Mesmo que mude tudo e vire o bonitinho de cabeça para baixo.
Sim, às vezes abrimos portas que talvez preferíssemos não ter aberto. Sim, entramos em castelos lindamente decorados que escondiam predadores à espreita. Mas estamos aqui. Vivas. Mais despertas, mais maduras e cada vez menos ingênuas.
Porque a curiosidade, com o tempo, afia nosso faro. De impulso cego, ela se transforma em sabedoria encarnada. Aprende a cheirar antes de tocar, a se ouvir antes de agir, a sentir antes de confiar. Se escutarmos a Curiosa em nós e fecharmos os olhos agora, só por um instante, conseguiremos perceber.
As portas estão aí.
Algumas esperando pacientemente.
Outras sussurrando mistérios pelo batente.
E a chave?
Bom, a chave a gente já carrega faz tempo.
Agora é só respirar fundo —
desobedecer
e girar a maçaneta.
Com presença,
Paty
Antes de encerrar essa edição especial da Vagarosa, eu convidei a Paty para responder algumas perguntas sobre a experiência dela na Clareira — o processo de consultoria criativa e estratégica que vivemos juntas, em que reestruturamos a presença dela no Substack, os textos, a identidade e fortalecemos a alma da sua publicação.
Foi uma travessia intensa, feita de muita troca, escuta, afinação e doses generosas de irreverência. Aqui, um pouco do que fica com ela após a consultoria.
Como foi para você viver esse processo profundo de reestruturação sob minha guiança?
Foi o espaço perfeito para que eu pudesse elaborar meus desejos para esse novo momento, alinhar ideias e compreender a transição de Bálsamo para Curiosa. Tenho em mim a certeza de que quando temos um espaço seguro e guiado para a vivência dos processos que queremos experienciar, a força e o modo como eles acontecem ganham uma profundidade de criação e realização que vão muito além do previsto. Ter a sua medicina me acompanhando de perto me relaxou de um jeito que me possibilitou ampliar minha visão, ouvir meu coração e ousar confiar naquilo que estava sendo sussurrado em meus ouvidos.
De fato, duas cabeças pensam melhor que uma, e dois corações então, nem se fala.
Como esse trabalho te ajudou a confiar mais na sua voz e nas suas escolhas?
Primeiro, o alinhamento que hoje vejo na Curiosa é algo que me deixa muito feliz. Ao reescrever todos os pontos de contato com quem me lê, alinhar a comunicação e aprender a olhar para as métricas e filtros com estratégia, entendi o quero comunicar e descobri quais caminhos percorrer para criar relações mais profundas com as pessoas que realmente me leem e se conectam com meu trabalho.
Segundo, a confiança que ganhei com as nossas trocas é algo que vai muito além do que eu poderia ter feito sozinha. Sem a sua guiança, a transição aconteceria, mas a força e potência alcançadas ao fazermos juntas elevaram o nível de refinamento e direção.
E por último, mas nem de longe menos importante, me fortaleci como mulher. Nesse processo, senti como se estivesse caminhando por uma estrada ainda desconhecida, mas, como você estava lá, segurando a minha mão, eu relaxei. Não tive medo de fazer os movimentos necessários, pois você estava ali comigo e já havia trilhado aquele caminho. A força de mulheres construindo juntas é algo que chega a ser difícil de explicar.
Que retornos você teve dos leitores? Pode contar um pouco sobre o que mudou em termos de números, crescimento, alcance e conexão antes e depois da Clareira?
Alinhamento é o primeiro ponto. Antes eu sentia dificuldade de dizer com clareza do que se tratava a Curiosa e agora está tudo muito claro, tanto para mim quanto para quem chega. Isso me dá muito mais tranquilidade para criar novas edições e explorar caminhos de crescimento dentro da plataforma (o que inclusive já fizemos durante a consultoria).
Em relação à números, tive um crescimento de 25% nas visualizações em todas as edições do Caminho Curioso, e em algumas edições esse crescimento chegou a 40%.
Em relação ao engajamento e conexão, os comentários, curtidas e envolvimento mudaram não somente em número, mas em interesse genuíno. Consigo perceber o entusiasmo de quem está do outro lado, algo que, para quem escreve, é uma alegria sem tamanho e serve de confirmação de que estou no caminho certo. E é só o começo!
O que você diria para quem está considerando viver a Clareira?
Se joga! Invista nessa guiança, pois ela vai muito além da sua publicação no Substack. Para mim, foi como uma passagem para um novo lugar bastante potente dentro de mim mesma, e eu digo isso sem exagero nenhum.
É como se houvesse, de fato, uma clareira no meio de uma floresta cheia de ideias, sonhos e vontades. A floresta é a nossa mente, e nessa clareira está a Verbena sentada em um tronco de madeira com um grande sorriso no rosto e uma fogueira pronta para ser acesa. Essa fogueira potencializa nosso fogo criativo que, em seguida, espalha luz por todos os lados. É como me senti. É como ainda me sinto.
Só tenho a agradecer por esse processo que vivemos juntas e recomendar, de olhos fechados e coração bem aberto, que mais mulheres se permitam viver sua guiança.
Quais são os próximos movimentos da Curiosa?
A Curiosa se estabelece como espaço de exploração do que significa viver uma vida criativa — com a intenção de oferecer perguntas-chave que abrem caminhos, resgatar sentidos e lembrar que a criatividade pode ser parte do nosso dia a dia, de forma viva, natural e encarnada.
Agora que a Clareira terminou, me sinto ainda mais conectada com a alma da publicação — e pronta para aprofundar o que começamos juntas. Os próximos movimentos incluem edições que honram a beleza de viver de mãos dadas com a curiosidade e, claro, outras formas de experimentação criativa.
E o que se prepara para nascer através dela?
É com muita alegria que compartilho, em primeira mão, a criação de uma nova travessia: Vida boa de se viver — uma experiência de aprendizagem que criei para que as pessoas possam se dedicar ao prazer de construir uma vida que, realmente, gostem de habitar.
Essa é uma travessia em capítulos. Cada capítulo oferece narrativas e práticas que nos convidam a ouvir o que faz sentido, saborear o que nos nutre, e transformar essas descobertas em escolhas mais leves, alegres e genuínas.
E como essa experiência está começando agora, decidi abrir 10 vagas gratuitas para mulheres que sentirem de viver essa bela travessia ao meu lado. Preparei um formulário pra que as interessadas me contem um pouco sobre o momento de cada uma — e o que as inspira a mergulhar nessa aventura de resgate e apropriação dos gostos e gozos da vida.
Clique aqui para acessar o formulário de inscrição.
Quer saber mais sobre a Clareira?
Para entender direitinho como funcionam as opções de consultoria — da Clareira Pocket à Clareira Expandida — dê uma olhada no FAQ, onde respondo dúvidas mais comuns e detalho as diferenças entre elas. E para seguir explorando, clique nos botões abaixo e veja qual Clareira melhor te serve nesse momento.
Trecho do livro Mulheres que Correm com os Lobos
Que alegria ver nascer o que vem da voz da alma, e que alegria maior ainda viver isso ao lado de outra mulher.
Obrigada minha querida, me sinto honrada, encantada e assustadoramente entusiasmada com o que construímos juntas.
Sejamos desobedientes! ♥️🫂♥️
Que lindeza de texto, meninas!
A curiosidade é o nosso terceiro olho.