A previsão do tempo diz que a tarde será de muita chuva, mas agora, dez e meia da manhã, hora da primeira soneca, somos agraciadas pelo tango entre sol e vento — uma dança de passos alternados onde ora a pele esquenta, ora esfria.
Em um dos bolso de trás da calça jeans de cintura alta, está o telefone clamando pela mão esquerda que repousa no bolso da frente enquanto a outra, guerreira, empurra sozinha o carrinho onde agora dorme a bebê que teve mais uma noite de sono picotado. Dois novos dentes estão nascendo. Eu sei. Mas saber e, no bico do peito, sentir o drama, não me impede de, pelo cansaço e frustração, ver meu bom humor talhar.
Deixo o telefone pedir para usar meu tempo.
Deixo a palma da mão enfiada no bolso coçar pela abstinência de ocupação. Deixo um ou outro pensamento inoportuno me dizer que deveria estar respondendo e-mails e mensagens acumuladas, que seria prudente estacionar o carrinho ao lado de um banco vazio onde, normalmente, sentam senhorinhas irlandesas e usar esse “enquanto ela dorme” para ser produtiva.
Acontece que não é porque agora eu trabalho nas brechas de tempo que surgem entre uma demanda e outra da vida de mãe — e de dona de casa — que preciso trabalhar em todas as brechas que surgem.
Resisto.
Hoje o que eu preciso é do ócio regenerativo.
Aquele que, diferente do criativo, vem imbuído de absoluta falta de propósito.
Com uma mão inquieta no bolso e a outra pilotando o trambolho de rodinhas que me denuncia responsável por uma alma recém encarnada na experiência Terra, contemplo o caminho que os pés, vestidos de bota, desenham pelo chão do parque que tenho o privilégio de ter como vizinho.
Escuto o farfalhar das folhas no topo das árvores sendo acariciadas pelo vento que é quem, logo mais, trará a chuva prevista.
Sinto o cheiro universal de grama recém cortada que é exatamente o mesmo, independente de em qual país ela tenha escolhido fincar suas raízes que, diferente das reflexões que me preenchem o sótão do corpo, não são nada profundas.
Com a sola dos pés, percebo o macio da palmilha brincando de ser nuvem, amortecendo o encontro dos meus 48 quilos de osso, carne, leite materno e prosa radicalmente poética, com o chão duro de concreto — responsável por revelar que o bosque cheia de esquilos que estou prestes a atravessar foi tocado pela mão do bicho homem que tende a urbanizar aquilo que não consegue controlar.
Na boca, o gosto ainda é do quadradinho de chocolate que, ao sair de casa, coloquei debaixo da língua para que fosse amolecendo devagar no enquanto do meu vagar, que é o que há de transformar meu humor talhado em ambrosia.
Mas é o que meus olhos veem que me intriga.
//
Parece que vivemos uma epidemia de desencantamento. Todo mundo anda com a cara meio cinza, a expressão fechada, o semblante nublado, o olhar distante repousado na falta de um pouso no mundo da matéria, perdido em pensamentos que anunciam catástrofes, escassez, discórdia e mil motivos para ainda mais exaustão. O sorriso e a capacidade de sorrir andam ausentes dos lábios, quase sempre cerrados, em resultado da preocupação que inconscientemente nos trava a mandíbula.
As pessoas com as quais cruzo no caminho, parecem não saber exatamente o que as acinzenta, mas carregam no rosto e no corpo arqueado uma tensão que denuncia desconexão — com o entorno, com o sentido das coisas e com a própria possibilidade de estar exatamente onde os pés estão. Me pego julgando quem comigo cruza sem cruzar o olhar. Como é difícil passar pelo cinza alheio sem formar opniões sobre aquilo que não é da minha conta.
Apesar do nome nada comum, não sou tão diferente assim do resto da espécie com a qual compartilho azinhos e azões — esses segredos genéticos minúsculos que nos igualam mais do que supomos. Também devo estar com a cara meio cinza, assombrada pelo futuro catastrófico que nos aguarda no horizonte nada distante, arqueada pelo peso concreto da minha própria urbanização, anestesiada pela dificuldade em estar exatamente onde meus pés quase sempre calçados estão.
Será que estou
onde meus pés estão?
acinzentada?
urbanizada?
Talvez um pouco.
Talvez ainda um tanto.
Mas cada vez menos.
Paro em frente uma lâmina d’água aninhada num pedacinho côncavo da trilha que atravessa o bosque onde, todo santo dia — faça chuva, faça sol, faça riso ou rios de sal — venho caminhar e fazer a pequena dormir ao som de passarinhos e de aaaaaaa-leeeeee-crim, alecrim dourado que nasceu no campo sem-ser-seme-aaaa-dooo.
E é o que meus olhos veem que me intriga.
//
A luz do sol, inclinada na diagonal da manhã, tinge a superfície de dourado. E ali, refletido com uma nitidez que beira o delírio, não vejo exatamente o céu, nem a copa das árvores, nem meu próprio rosto cansado. O que se revela, através desses mesmos olhos que uso pra atravessar a rua, é um outro mundo.
Lá, no fundo desse espelho líquido, onde a luz dobra devagar, uma floresta paira suspensa. As raízes não se enterram: flutuam em feixes, como cabelos submersos num espaço aquático. As folhas, em vez de verdes, são de um tom pro qual ainda não temos nome — entre a cor do âmbar e o som aveludado do violoncelo. Há criaturas que parecem feitas de sopro e saudade antes de virar solidão. Andam não com os pés, mas com a pura intenção de se mover. Tocam o chão sem peso, como se a gravidade fosse só um detalhe desimportante.
O ar cintila. No centro da paisagem, uma árvore imensa respira com olhos semicerrados, seus braços se ondulam como galhos em prece.
Tudo ali parece saber de mim.
Não como quem esteve, desde muito antes da gravidez, me observando atravessar esse mesmo bosque carregando uma profundidade fruto do meu ascendente em escorpião e dos meus muitos astros na casa da poesia, e sim como quem guarda — como se esse lugar me conhecesse desde muito antes d’eu nascer.
Sem pensar, entendo: não se trata de um mundo fantástico distante, mas de um plano sobreposto ao lugar que uso para costurar minha existência espiritualizada nas horas vagas. Uma dobra sutil da realidade, um interstício entre a linha do tempo vivido e o atemporalidade desdobrável. Um espaço que se abre não com esforço, mas com o músculo da presença encarnada — quando os cinco sentidos, enfim, se expandem para além de suas funções básicas de ler o mundo material do lado de fora da pele e passam a ser a forma que temos de nos comunicar com o Sagrado Todo do qual somos pequena parte inseparável.
//
Um esquilo atravessa o caminho.
A poça d’água volta a ser só acúmulo de precipitação já vertida e pelo chão abraçada.
O sol retoma seu tango com o vento.
Sigo meu baile.
E enquanto empurro o carrinho de volta pra casa, ainda com o corpo atravessado pelo que teimamos acreditar só existir na imaginação, penso um pensamento que vive para baixo da cabeça:
para comungar com o Todo,
não é preciso atravessar portais.
O que precisamos é reencantar
esse jeito acinzentado de estar — vivos.
Com um afeto radical,
Verbena Cartaxo
Vagarosa Lab.
Um espaço de práticas criativas, pausas corpóreas e desaceleração intencional, onde cada proposta te ajuda a cultivar uma relação mais tranquila com o tempo, fortalecer a conexão com o Corpo-Oráculo, regular o sistema nervoso e expandir a criação a partir de uma presença sensível e encarnada.
No dia 25 de junho, começa o primeiro ciclo criativo do Vagarosa Lab: Seselelame — o cultivo do Corpo Selvagem — um termo da língua Setswana que pode ser traduzido como “se deixar tocar no íntimo” ou “escutar com o sangue”.
Ao longo de quatro semanas, abriremos espaço para que o corpo se revele como oráculo criativo de expressão selvagem. Ressignificaremos os sentidos, reencantaremos o sentir, despertaremos o corpo como instrumento criativo e reconheceremos o que borbulha em nós como fonte legítima de expressão.
Inspirada em saberes ancestrais como os do povo Ubuntu e de outras matrizes que cultivam a interdependência, esse primeiro ciclo criativo será uma experiência cuidadosamente alquimizada para mulheres que enxergam na escrita, no movimento e na presença, um espaço sagrado — e que desejam expandir os sentidos ancoradas numa sabedoria ancestral que não vê o corpo como uma engrenagem a ser otimizada, e sim como um arquivo vivo de histórias, um instrumento sensível de escuta e expressão e um território poroso, entrelaçado à Natureza e às forças invisíveis que nos atravessam e antecedem.
Para maiores informações, clique aqui.
E para participar do esquenta que tá rolando no chat da Vagarosa, clique aqui.
Por que assinar a versão paga?
Novidade, novidade!
Agora, ao se tornar uma uma assinante paga da Vagarosa, além de ter acesso ao Vagarosa Lab, a seção Prosa Selvagem, aos ciclos criativos e seus muitos desdobramentos, você passa a fazer parte de um movimento de cuidado coletivo, sabia?
Para cada assinatura anual feita, outra será doada a uma mãe solo no Brasil.
É isso mesmo que você acaba de ler.
Meu desejo é que esse nosso santuário seja refúgio e rede de apoio para aquelas que cuidam do futuro do mundo sozinhas, vivem sobrecarregadas e, na tentativa de dar conta do recado, acabam deixando o cuidado consigo e com sua expressão criativa em último lugar numa lista de prioridades que só faz crescer.
Com essa assinatura, você estará não só recebendo nutrição e impulsionamento na sua jornada de expressão criativa, mas também possibilitando que essa mesma experiência balsâmica seja desfrutada por outras mulheres.
Se você é mãe solo no Brasil e gostaria de receber uma dessas assinaturas, basta responder a este e-mail se apresentando. À medida que novas assinaturas anuais forem sendo feitas, vou presenteando a partir dessa lista.
E se você deseja presentear uma mãe solo do seu círculo mais íntimo — uma amiga, vizinha, irmã, prima, que você sente irá se conectar com a minha escrita medicinal e desfrutar das proposições do Vagarosa Lab — isso também é possível.
Basta entrar em contato comigo no email verbenacartaxo@gmail.com, assim que fizer sua assinatura anual, e me passar o e-mail da mãe solo que você gostaria de presentear. Ela receberá uma cartinha minha, falando do seu presente e explicando, detalhadamente, os benefícios dos quais ela poderá desfrutar.
E por fim — mas não menos importante —, sua assinatura apoia diretamente o trabalho de uma artista, escritora e mãe imigrante, que se dedica a criar espaços de expressão, reencantamento e acolhimento para outras tantas mulheres. E por isso, que para mim significa tanto, eu serei profundamente grata. Obrigada!
Com amor,
v.
é impressionante o quanto o mundo se revela quando paramos para percebê-lo, né? lindo! a revolução será multicor❤️🔥
Amiga, aqui na minha terra parece até uma roça, todo mundo olha, dá bom dia, diferente dos grandes centros, que as pessoas andam com pressa, ou com medo.
Acho que a gente só consegue trocar a paleta cinza pelo multicolor passa pelo resgate com o coletivo, né, que anda tão fora de moda 🥹.
Sempre muito bom te ler! ❤️