Dublin, 06 de novembro de 2024
Pequerrucha,
Numa época nada distante no calendário mas que parece ter acontecido em outra era, o que, de fato aconteceu; quando, secretamente, eu desenhava no território imaginação um mochilão solo desde el caliente México hasta la helada Tierra del Fuego, e planejava me divorciar porque andava achando que casamento e liberdade não combinavam, eu já me declarava lunática1, triste, louca ou má,
mulher de fases, lunar.
Naquela nada distante era-donzela, pré a histórica maternidade, eu escrevia ensaios sobre a minha lunaticidade latina, em sarais brazucas aqui na terra dos Leprechauns, declamava meus poemas-ode à loucura visceral da Mulher Selvagem e acreditava, verdadeiramente acreditava com tudo que se tem para acreditar, que conhecia o desajuste.
Balela, filha.
Mal sabia eu que a minha lunaticidade até então era categoricamente sã.
A loucura loucura, loucura mesmo, aquela que faz a gente colocar o celular na geladeira e o queijo no bolso, falar embolado quase babando, errar a distância entre a maçaneta e a mão e não entender o porquê da porta não querer abrir, e, ao se olhar no espelho, pensar: “quem é essa pessoa me encarando? Ela me parece familiar, será que é a vizinha do segundo andar?”, essa loucura aí eu só vim a conhecer na semana passada. Mais precisamente na última sexta-feira de manhã quando acordei de mais uma noite não dormida e me perguntei:
“o que é que eu tô fazendo de errado?”
Bom, dizem as línguas mais experientes que a maternidade é uma jornada que a mulher trilha rumo ao “fazer as pazes com o todo da sua imperfeição” e aceitar que o verbo errar será um dos mais frequentemente conjugados — especialmente pelos pais de primeira viagem, criaturas que, até colocarem os pés no oceano sem fundo que é a experiência de ser responsável por manter vivo um outro ser humano, acreditam saber tudo do mundo.
Eu, teoricamente, sabia que conheceria novas camadas da minha imperfeição e que erraria, muito, mas até então, pequena, até aquela olhada no espelho cheia de questionamento, eu acreditava que estava fazendo um trabalho impecável, afinal, além de viva você estava bem nutrida e cheia das dobrinhas, esperta que só, sorridente e apresentando todos os sinais de um ótimo desenvolvimento.
A única coisa que não se enquadrava na categoria do “tudo está ótimo” era o sono.
Ou melhor, a falta dele.
Desde meados de outubro você passou a não dormir mais de duas horas seguidas e, nessa última semana, essa que culminou na tal sexta-feira, você passou a acordar de 50 em 50 minutos querendo meu colo, meu cheiro, meu jeito, seu porto seguro.
O Google me dizia: “Cada bebê é único.”
A internet tentava me consolar: "Isso se chama regressão do sono, costuma melhorar em poucas semanas”
Quando fui à médica para tratar, uma vez mais, daquele probleminha que o seu parto me deixou de lembrança, ela me disse: “É normal. Alguns bebês passam pela famosa regressão dos 4 meses aos 3.”
Uma enfermeira da clínica, aquela alta, de olhos claros, que nos contou que está grávida do terceiro filho, sugeriu: “podem já ser os primeiros dentinhos, sabia?”
Será?
Os dias foram passando, seus quatro meses de vida se aproximando, enquanto a exaustão e as mensagens não respondidas no WhatsApp da mamãe só aumentavam.
Sim, só podia ser.
Você estava passando pela regressão do sono e seus dentinhos começando a nascer.
Era isso — uma fase.
Tinha que ser.
Mas… será?
Será mesmo?
Não.
Não necessariamente.
Podia muito bem ser outra coisa.
E sabe, filha?
Era. Outra coisa
O dia amanheceu frio.
Já é hora do almoço e seu pai decide te levar para dar uma volta lá na nossa florestinha — hoje é sexta, e ele trabalha de casa.
“Tenta dormir”, ele me diz com aquele jeito polonês dele, que faz até uma sugestão soar como comando. Em outra era — naquela era-donzela-nada-distante, sobre a qual vez ou outra eu escrevo — isso me dava nos nervos e me fazia querer comprar uma passagem só de ida para a Costa Rica. Agora, isso me faz achar graça e querer ficar — bem aqui, emboladinha nos desafios dessa relação entre dois sexos, duas culturas, dois continentes, dois hemisférios e dois signos não complementares.
Enfim..
Voltou a ventar, o ar está seco cortante e as folhas vermelhas e alaranjadas estão caindo, uma por uma, aos montes. Quando ele diz que vai te levar para dar uma volta no parque, pego o macacão de inverno que você tem, aquele de flanela bem quentinho cinza sem graça, e te coloco dentro. Fecho o zíper até o pescoço, te dou um cheirinho no cangote e lá se vão vocês assistir esquilos trabalharem incessantemente, feito formiguinhas, coletando castanhas para comer durante o inverno que não demora chega antes da hora.
Eu deveria tentar dormir, ele tem razão.
Mas eu, além de latina, sou rebelde e gosto de desobedecer — até boas sugestões, infelizmente.
Ao deitar sinto que o que eu preciso mesmo é desabafar. Além de louca, lunática, lunar e de fases, mamãe é bruxa intuitiva que decide com o sentir. Mando longos áudios para cada uma das amigas cujas mensagens estavam sem resposta, algumas há dias, outras há semanas, e falo do nível de cansaço que cheguei. Conto que você é melhor que os meus melhores sonhos mas, poxa vida, bem que você podia dormir direito, né? Desabafo, com cuidado para não soar amarga, porque a verdade é que ainda que as noites estejam sendo desafiadoras, os dias e cada troca de olhar nossa, cada sorriso ganhado de graça, cada abraço apertado e cheirinho no seu cangote, fazem tudo — tudo mesmo — valer muito a pena.
Você é melhor que sonho, filha.
Você é a realidade sendo expandida.
Depois de quase uma hora de desabafos enviados via áudio para as titias espalhadas por diferentes cantos do mundo, decido, enfim, acatar o comando. Pego no sono minutos antes de vocês voltarem do passeio — seu pai energizado da caminhada e você completamente apagada, agarradinha nele dentro do sling que eu, carinhosamente, chamo de canguru.
Sem fazer barulho ele te coloca no berço tentando não nos acordar, mas meio sem esperanças de que, ao pousar no colchão, você continuará dormindo, afinal, você sempre, seeeeeeeeeeempre, acorda quando te tiramos do canguru.
.
Desperto junto com você.
São três da tarde.
Estivemos dormindo, pequena, por duas horas.
Algo não está como deveria estar. Você não acordou ao ser tirada do canguru.
“Será que é porque ela tá quentinha com esse macacão?” — nos perguntamos em uníssono.
Será?
Quando o fim de tarde chega, depois do banho e antes de te dar de mamá, novamente te visto com o tal macacão. O ritual é o mesmo de todo dia, penteio seu cabelo cor de castanhas alimento de esquilos-formiguinha, você mama, arrota, mama mais um pouco, arrota, muda de peito, ri, chora, arrota e volta a mamar até cair no sono. Te transfiro pro berço, te embrulho apertadinho com uma manta, te cubro com um cobertorzinho, apago o abajur e saio do quarto. Uma hora depois, já de banho tomado e jantada, deito na cama esperançosa de conseguir dormir pelo menos um pouquinho antes de você começar a sua série de acordamentos noturnos.
.
No escuro, acordo assustada.
Não sei que horas são mas a casa está silenciosa. É madrugada. Acendo o abajur e, com o coração apertado, enfio a cabeça no berço para ver se você está respirando. Pela boca aberta, o ar entra e sai carregando um bafinho de leite.
Sou inundada por alívio.
Pego o telefone para ver a hora:
01:57
Volto a dormir.
.
Acordo com você resmungando, meu peito vazando e uma metade da camisa já encharcada de leite. São quase três e meia.
Incrédula, faço a matemática na cabeça. Você e eu acabamos de dormir quase sete horas. Seguidas!
Rio alto querendo chorar, me segurando para não colocar o chicote na mão do carrasco que existe em mim e ser consumida por culpa. Com o coração apertado, enquanto te dou de mamá e sacio seu apetite feroz, coloco no colo a mulher em mim, aquela que acabou de se tornar mãe, que está aprendendo a ser um porto seguro, que te segura firme enquanto se equilibra na corda bamba das novas inseguranças que, com você, nasceram nela; no ouvido dela, sussurro baixinho que é para não te assustar:
“Você está fazendo um ótimo trabalho, mama. Errar é o melhor jeito de aprender a ser a mãe imperfeita da qual sua filha escolheu nascer”.
Não era a tal regressão do sono.
Não eram os dentinhos.
Não era uma fase.
Era frio, pequerrucha.
com amor,
Mamãe
O que você sussurraria baixinho no ouvido do seu eu-imperfeito ao colocá-lo no colo?
O aniversário de três anos da Vagarosa está chegando e, desta vez, além de bolo guaraná e muitos doces para você, teremos também uma inesperada e necessária reorientação de rota — fruto do amadurecimento não só deste cafofo, mas também de sua criadora: essa artista literária, costureira de palavras, que desde novembro de 2022 vem se autopublicando, semana após semana, vencendo bloqueios, lapidando sua voz e cavando um espaço para plantar sua medicina poético-corpórea nessa terra radicalmente fértil que é o Substack.
Nos vemos no próximo domingo, para começar a conversar sobre o que nos espera neste terceiro ano de existência medicinal da Vagarosa.
Até lá!
Verbena
Neste texto, utilizo a licença poética para tratar da “loucura” de forma simbólica e metafórica, consciente de que, em seu sentido clínico, a loucura é uma condição de saúde mental que exige seriedade e respeito. Essa abordagem literária não tem a intenção de minimizar ou banalizar a experiência de pessoas com transtornos mentais, mas sim explorar um conceito amplo e subjetivo para fins criativos.
quando li “era frio”, sorri e senti um rio de ternura percorrer meu corpo. é uma delícia te acompanhar crescendo mãe, V❤️🔥 quero muito ter esse livro na estante pra quando a minha hora chegar, me sentir menos sozinha!
Que escrita boa de ler. Me inspira.