Não sei se nasci para ser nômade
Por que chamamos de normal um modo de vida que nos adoece?
Na boca, coloco pedaços de melão, mas o gosto que sinto é de melancolia. Embrulho a existência em camadas de algodão e lã, mas, no corpo, faz frio. Olho para cada canto do apartamento, tão farto em espaço, que há quatro anos chamamos de lar, e sinto saudades de algo pro qual ainda não tenho nome.
Chegamos em casa há pouco mais de 12 horas e, ainda que haja, sim, algo profundamente reconfortante em dormir na própria cama, no lençol branco de muitos fios, comprado com o suor do próprio trabalho, o nozinho feito de tripas, amarrando o estômago e me tirando o apetite nessa manhã de domingo, revela algo que meu dicionário emocional ainda não sabe com quais palavras traduzir.
Ingenuidade a minha achar que, enquanto era totalmente absorvida pela fantasia virando realidade palpável, conseguiria documentar a aventura que estava sendo vivida. Ingenuidade achar que, depois de quase uma década sonhando um sonho, no enquanto da experiência de materializá-lo, haveria espaço físico, mental, emocional e espiritual para digerir o material bruto desses 14 dias na estrada — viajando e vivendo na nossa vanzinha, atravessando vales, subindo e descendo montanhas catalãs, até pousar na Costa Brava do mar Mediterrâneo.
Há anos eu viajo aqui mesmo pela Irlanda de van e durmo algumas noites nela, num esquema totalmente improvisado — já que a nossa micro vanzinha não é uma tiny house e não foi adaptada para caber cama, fogão, pia e geladeira.
Mas essa foi a primeira vez que a viagem e a estadia não foram apenas de fim de semana. E foi, certamente, a primeira vez que vivi a magia de estar na estrada, nos movendo diariamente de um lugar para outro, sendo mãe, descobrindo e apresentando outros vários cantos do mundo com — e para — a minha cria.
Dormimos em sacos de dormir sobre colchões de ar desses de acampamento, que estão longe de suprir os padrões de qualidade do setor de hotelaria; cozinhamos em um fogareiro de uma boca, sobre uma mesa dobrável; tomar banho, escovar os dentes e lavar louça aconteciam em banheiros e pias comunitárias; e toda noite precisávamos rearranjar tudo para que houvesse espaço para dormir. Nos campings onde estivemos estacionados ao longo das últimas duas semanas, éramos sempre os da menor van, os únicos cozinhando — e fazendo tudo, menos dormir — do lado de fora; os únicos nesse esquema totalmente improvisado, sem nenhum outro luxo que não meu café com leite de aveia e jamón ibérico de la mejor calidad; e os únicos com uma bebê tão pequena, fazendo malabarismos para que ela não comesse uma quantidade preocupante de terra, areia e mato.
Longe de uma experiência “dos sonhos”, o que vivemos foi tão ou mais desafiador do que qualquer vida cotidiana — já que até um apagão, sem precedentes, nos pegou na estrada, nos meandros dos Pirineus, com pouca gasolina no tanque, tendo que pensar e agir como nos velhos tempos pré-internet, quando dependíamos de pessoas locais para resolver perrengues e de placas na estrada para chegar ao destino.
Passar horas na fila do único posto de gasolina que tinha gerador e ainda estava operando; entrar no único supermercado também funcionando com gerador e encontrar prateleiras vazias bem no clima início de pandemia, sem saber se a falta de eletricidade e de internet de um país inteiro — e mais um tanto — era o início de uma terceira guerra mundial (algo já abertamente falado sobre em países europeus), me fez refletir sobre as prioridades dessa única vida que tenho para viver.
Não sei se nasci para ser nômade.
Para estar na estrada em tempo integral.
Mas tenho absoluta certeza de que não nasci para morar em um apartamento grande, sem quintal, numa das cidades mais caras do mundo — onde as contas de eletricidade podem chegar a 700 euros, e os aluguéis são cada vez mais ultrajantes. Não nasci para estar em profunda conexão com a natureza só nas férias ou nas viagens de fim de semana. Não nasci para passar mais tempo de sapato do que de pé descalço, e sentir frio quase doze meses por ano.
Pensei que teria muito para compartilhar, e em tempo real, sobre nossas aventuras em terras bascas e catalãs, mas a verdade é que estive — e ainda estou — com uma interrogação enraizada no peito.
Por que criamos um mundo, uma sociedade e estilos de vida que nos aprisionam dentro de quatro paredes? Por que aceitamos rotinas que nos afastam uns dos outros, nos tornam intolerantes, indiferentes, desconectados dos ciclos naturais que nos sustentam — enquanto fingimos que tanta conveniência é sinônimo de progresso?
Por que chamamos de normal um modo de vida que nos adoece? Um cotidiano desprovido de interação com a beleza do Mundo Natural, que vai nos apagando e nos desvitalizando aos poucos, enquanto insistimos que isso é só “a vida adulta”?
Não, não é.
Ainda não tenho uma resposta para tantos porquês, mas desconfio que ela esteja na terra com a qual nos sujamos quando pisamos no chão desprovidos de sapatos e de tanta civilidade, e no céu selvagem que atravessamos com o olhar quando nos lembramos de levantar a cabeça.
Talvez a resposta esteja não no “onde”, mas no “o quê” nos faz sentir radicalmente vivos — e na coragem de ir atrás de viver esse radicalismo mais do que só nas horas vagas, nas férias e nos feriados.
Com um afeto radical,
para você que neste santuário escolhe estar.
Verbena Cartaxo
Clareira
Minha agenda está oficialmente aberta — e resta uma última vaga para o primeiro e para o segundo ciclo de atendimentos da Clareira, uma consultoria individual em quatro encontros para quem já publica no Substack e sente que é hora de clarear a visão, afinar os elementos estruturais da publicação e potencializar voz e presença.
A proposta é mergulhar juntas no seu momento atual, entender o que você deseja criar e viver nessa nova temporada, e alinhar cada ponto de contato com quem te lê. Vamos re-imaginar a sua publicação como uma experiência integrada, reorganizar o acervo, resgatando e dando nova vida às pérolas que já foram criadas, e explorar os bastidores da plataforma para mapear o comportamento dos seus leitores — tudo com estratégia, escuta, muita irreverência e criatividade.
A ideia é transformar seu cantinho no Substack em uma plataforma autoral de expressão livre, intencional e sustentável a longo prazo.
Todas as informações sobre a Clareira estão aqui.
E se você está apenas começando (ou se preparando para começar), talvez o Clareira Pocket seja o ponto de partida ideal. A ideia não é prever o destino final ou se engessar em um formato rígido, mas sim preparar o terreno para que a sua publicação nasça com coesão, personalidade, direção e contornos fluídos — que convidam à experimentação.
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v.
Deixei a capital tem 10 anos, fez essa semana, inclusive. Moro numa cidade no litoral cearense, a praia não tá tão perto, mas bom, com R$3,35 consigo chegar em Canoa Quebrada 😅 São 10 anos andando na rua sem medo de ser assaltada. 10 anos indo pra cima e pra baixo de bicicleta. 10 anos sem grade nas janelas, e sem precisar ter 2 portões antes de de fato entrar em casa. Mas ainda não é mato o suficiente pra nós 🤣 nosso sonho ainda é um sítio, de preferência num clima mais ameno da serra. Mas por enquanto a gente vai cultivando o que dá por aqui mesmo, em nossa casinha alugada, nos vasos ou no chão. Morar em casa é bom demais, e morar no interior também é! Vez por outra nos perguntam se temos vontade de voltar pra Fortaleza, em uníssono respondemos: Deus me livre! 🤣
Sei que esta sua inquietação vai levar vocês para um lugar que tenha como viver a vida que mais combina com vcs. Abraços 🎈
No fim nascemos e fomos criados para viver em conexão com a natureza e mais cedo ou mais tarde nosso “estilo de vida” urbano vai cobrar o seu preço para alguns através da saúde física, para outros através da mental ou espiritual. E que ironia “evoluirmos” tanto e termos deixado de lado princípios antigos básicos essenciais para nossa perpetuação. As coisas verdadeiras:
Comida de verdade
Relações de verdade
Descanso de verdade