Lentidão proposital e o poder da desistência.
E o que a escalada até o Monte Evereste me ensinou sobre ambos.
Eu não sei você, mas eu detesto ficar para trás.
Ou melhor, de-tes-ta-va.
Verbo conjugado no passado desde 2017 quando fui para um dos cantos mais remotos desse planeta azul e voltei viva de uma das aventuras mais fisicamente e mentalmente desafiadoras já vividas até o presente momento.
Eu sempre detestei a sensação de ser a última; a última a chegar, a saber, a conquistar, a realizar, a entender, a experimentar e a resolver.
E não, uma vida inteira sendo a última da chamada na escola e a última nas filas por ordem alfabética não serviram para amenizar o meu desgosto e me fazer acostumar com a traseira, o lugar cativo de quem tem nome que começa com V W X Y e Z.
Um salve para as Virgínias, Valérias, Vanessas, Waleskas, Xuxas, Ynaras e Zínias!
E justamente porque o gosto do meu lugar cativo de infância e juventude sempre foi um tanto amargo e porque assim como você e o resto da humanidade eu nunca fui, e sigo sem ser e exatamente por isso estou a te escrever, encorajada a chegar por último ou deliberadamente ficar para trás, eu passei grande parte da minha década de vinte buscando ser a primeira, a pioneira, a visionária, a melhor, a mais rápida e a mais eficiente, e chegar antes de todo mundo para da dianteira apontar o caminho em frente.
Deviam nos alertar para a ingenuidade e a arrogância que nos entorpece quando estamos nos nossos 20 e poucos, concorda?
Meu virginianismo, que foi diagnosticado como agudo e que hoje em dia é remediado com doses fortes e diárias de ascendente em escorpião e um botão de foda-se ligado pelo menos 8 horas por dia, nunca me ajudou.
Pelo menos não quando o assunto se tratava de “estar em paz ao ficar para trás”.
Pelo contrário.
Aquela perfeccionista de plantão que eu era, adjetivo também conjugado no passado, se dedicava a não só tentar ser a primeira e mais eficiente como também a fazer muito melhor do que todo mundo e o resto do mundo.
Detalhe para o muito antes do melhor.
Sim, eu era arrogante.
Acontece que, como tudo nessa vida, experiências variadas nos atravessam justamente para nos ensinar a desaprender a ser quem nos acostumamos a ser e nos mostrar que muitos dos nossos grandes desconfortos e dificuldades são, na verdade, belíssimas oportunidades para repensarmos a forma como olhamos para aquilo que, repetidamente e ciclicamente, volta para o nosso campo nos convidando ao confronto consciente do que parece ser o nó no fio da nossa história ou a pedra no sapato da nossa existência.
Aquilo que vire e mexe nos percebemos vivendo outra vez, talvez em outra situação ou em um outro cenário, com novas pessoas, em um novo relacionamento ou num novo trabalho, mas que, independente das grandes diferenças, na essência sabemos ser só mais do mesmo.
Você sabe do que eu tô falando, né?
Pois uma das pedras no sapato da minha existência, algo que vire e mexe volta pro centro da roda, é o medo da não-realização.
Medo de estar só na platéia, aplaudindo os protagonistas bem sucedidos que atravessam o meu caminho sem jamais ser aplaudida e reconhecida. Medo de ficar para trás enquanto a dianteira é conquistada por outros, medo de ser quem segue e não quem é seguido, medo de ser pequena, desimportante, facilmente esquecida e não lembrada.
E exatamente porque esse é, ou será que também já posso conjugar esse medo no passado?
E exatamente porque esse era o meu grande medo, minha pedra no sapato, subir até a altitude de quase 6.000m para olhar o majestosos Monte Evereste nos olhos foi tão profundamente transformador e especial.
Porque ali, diante da grandeza real, eu me reconheci irremediavelmente mínima e aprendi não só que pressa literalmente mata como também que pouco importa ser lembrada.
Os grandes entendimentos e as belas reflexões colhidas dessa experiência singular só chegaram um tempo depois do fim desses longos e difíceis 24 dias de trilha pelos meandros de três vales remotos dos Himalayas ao lado de uma gangue de machos alfa briguentos sendo the only girl, a princípio carregando uma mochila muito mais pesada do que alguém que pesa 46 quilos deveria carregar.
Carregar uma carga pesada demais sem reclamar.
Esse era um outro traço do meu perfeccionismo e feminismo, uma necessidade de dar conta do recado com total eficiência sem jamais reclamar e sem revelar vulnerabilidades.
Nascida sob o signo de virgem ou não, só por você simplesmente ser mulher, acredito que essa necessidade aí soa bem familiar, tô certa?
Anyways..
Esses vinte e quatro dias me fizeram repensar não só aquilo que eu até então via como importância como também perceber que, às vezes, é mais sábio ter coragem de desistir pelo caminho do que ter coragem para seguir adiante.
Mas antes de chegar nas conclusões e nos grandes entendimentos que serão bálsamos pro seu momento, deixa eu te contar em mais detalhes um trechinho dessa bela história que começa com um voo num aviãozinho micro e um pouso no aeroporto mais perigoso do mundo, em Lukla no Nepal, à 2.485m de altitude?
Deixa?
Ótimo!
Prepara um algo gostoso pra beber e vem sem pressa que esse bálsamo é dos longos.
Mas antes de começarmos, peço licença para te falar de duas coisas bem importantes.
Enquanto isso, no lustre do Castelo Delírio.
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E mais..
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Simples assim!
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E agora que os recados estão dados, bora lá pra essa história transformadora.
A idéia de ir pro Nepal ainda que não tenha sido minha foi celebrada desde o primeiro momento, desde que meu companheiro nessa viagem chamada vida sugeriu que eu conhecesse na pele a sensação de chegar bem perto do topo do mundo e navegar a pé um oceano de gelo e neve. Algo que ele, com seus 20 anos de montanhismo nas costas, já tinha vivido várias vezes.
Naquela época, eu já tinha feito algumas tantas escaladas de altitude, já tinha atravessado geleiras com crampons nos pés e ice axe em mãos e já tinha alcançado a altitude de 3.404m ao escalar o Pico Aneto no norte da Espanha, uma escalada memorável de 14 horas de ação ininterrupta.
Mas eu ainda não conhecia a sensação de respirar ar rarefeito com pouco oxigênio.
Diferente de muita gente que vai pro Nepal, eu não fui buscar nada. Não fui me espiritualizar, não fui visitar templos budistas e não fui atrás de respostas.
Eu fui porque ele me convidou e porque eu raramente digo não pra uma bela aventura.
Pura ação e nem um pouco do filosofia.
Depois de alguns poucos dias em Katmandu, a capital do Nepal, nós pegamos um avião desses que cabem só cinco tripulantes + piloto e co-piloto e voamos rumo ao abismo literal, o povoado de Lukla onde está localizado um dos aeroportos mais altos do mundo e também um dos mais perigosos, não só porque a pista de decolagem e pouso termina na beira de um despenhadeiro sem fim mas também porque as condições climáticas raramente são favoráveis.
Uma vez aterrizados em segurança em Lukla, depois de um café coado amargo numa vendinha e com as mochilas nas costas, a minha inicialmente pesando 15 quilos, nós começamos a subida.
Eu não vou te contar dia por dia o que aconteceu ou deixou de acontecer, primeiro porque muito dessa aventura foi deletada da minha memória graças a falta de oxigênio no ar que depois dos 4000m de altitude diminui significantemente a nossa capacidade de registrar momentos e pensar com clareza e segundo porque eu não quero que essa publicação vire um livro.
Mas já te adianto que cada novo dia era sempre um tanto mais desafiador do que o anterior.
Depois de um longo primeiro dia de caminhada ficou bem claro para todos nós que eu não conseguiria carregar 15 quilos nas costas ao longo do quase um mês de caminhada que me aguardava pela frente.
O plano original da nossa trupe, composta por uma brasileira (euzinha) e dois poloneses, não era contar com a ajuda de Sherpas que são os locais que acompanham os turistas durante os dias de escalada e prestam serviço como carregadores.
Nosso plano original também não era o de simplesmente subir até o primeiro acampamento do Monte Evereste, que é o ponto mais próximo da montanha onde não-profissionais de escalada tem permissão para chegar - que é o que 90% das pessoas fazem.
Nosso plano original era fazer algo um tanto mais desafiador e nos juntar a minoria aventureira que opta por fazer um loop chamado Three Passes Trek, que consiste em percorrer três vales remotos, escalar três montanhas de mais de 5.000m e fazer um breve desvio só passando pelo acampamento do Monte Evereste.
Para dar conta de seguir com pelo menos metade do nosso plano original, nós contratamos dois Sherpas e eu passei a caminhar livre leve e solta com uma mochila pequena nas costas pesando não mais do que 5 quilos. O livre leve e solta não durou muito tempo, pois a medida que o ar vai ficando rarefeito nada permanece leve. Pelo contrário, a falta de oxigênio no sangue rapidamente altera humores, rouba energia, apaga alegria e aos poucos transforma cansaço físico em exaustão existencial.
Descansar, dormir e comer relativamente bem (pois a essa altitude e nessas partes remotas do planeta as dietas locais são bem pobres em frutas e vegetais frescos e consistem em batata, macarrão, pão e outras variações de carboidratos simples) não são suficientes para repor os níveis de energia e recarregar as baterias do corpo; a cada novo amanhecer a exaustão física e mental vai se tornando um tanto mais insustentável.
Naquela época eu ainda não tinha aprendido a pedir ajuda e ainda não sabia conviver com as minhas vulnerabilidades. Desistir era uma palavra que não existia no meu vocabulário e fraqueza era algo que eu simplesmente não me permitia demonstrar.
Ainda que doesse.
E doía.
Durante a escalada do Pico Aneto, na Espanha, eu aprendi que quando se trata de montanhas de grande altitude pressa literalmente mata, já que o corpo precisa de tempo para aclimatizar.
Quando mais rápido você ganha altitude menor é a capacidade do Corpo de manter suas funções normais com níveis baixos de oxigênio disponíveis.
Devagar é o único jeito de ganhar altitude sem colocar a vida em risco, subindo um pouco por dia e no final de cada dia de escalada voltando um tanto para trás para dormir numa altitude um pouco mais baixa do que aquela que o corpo já alcançou e experimentou.
Fico aqui pensando com os meus botões se essa não é uma bela metáfora para o processo de materialização de sonhos e projetos: três passos para frente, um pra trás, quatro pra frente, dois pra trás, lentamente deixando o corpo aclimatizar com a nova realidade desejada enquanto descansa na familiaridade segura.
É ou não é?
Só que mesmo caminhando vagarosamente e me aclimatizando, a verdade é que eu não estava mentalmente preparada para perder a minha alegria e entusiasmo naturais e seguir adiante puramente movida a força de vontade e determinação.
Acontece que eu também não estava mentalmente preparada para fracassar, ficar para trás e enfim, aprender a desistir.
E foi aí que eu me encontrei nos Himalayas em meio a um grande impasse e descobri o que eu tinha ido buscar no Nepal.
Afinal, é verdade.
Todo mundo vai pro Nepal buscando algo.