Desintelectualizando a Selvageria
Um convite ao caminho corpóreo de encontro ao abraço-casa da sua Natureza Selvagem.
Sabe chá de boldo?
Pois então, dependendo de qual é a sua relação com o livro Mulheres que Correm com os Lobos pode ser que algumas tantas linhas desse bálsamo tenham aquele amargor medicinal necessário de chá de boldo concentrado.
Fica o aviso.
De todos os bálsamos já escritos esse que hoje eu escolho compartilhar com você, e colocar numa das estantes de honra da seção um viver criativo dessa biblioteca de bálsamos, segue sendo o único que foi alquimizado há muito tempo e que ficou por anos guardado no fundo de uma gaveta criando mofo e, feito um bom queijo, maturando.
O que me impedia de compartilhá-lo e soprá-lo aos quatro ventos não era insegurança sobre a força da reflexão que ele propõe, pelo contrário, desde que eu o escrevi em uma tarde ensolarada de um verão irlandês passado eu carrego no peito aquela mesma centelha de paz que me aquece por dentro toda vez que eu produzo um escrito costurado com algumas poucas linhas de opinião própria e outras tantas de observação atenta e paciente dos meus arredores femininos e feminísticos.
Depois de anos maturando e esperando o meu momento certo para colocá-lo no mundo, eu posso afirmar que esse bálsamo não tem em sua composição nem uma grama de um achismo superficial e é o resultado da construção vagarosa de uma reflexão profunda de anos. E como toda boa reflexão mais amarga que doce que atravessa caminhos nos convidando a repensar o lugar cômodo e às vezes um tanto limitado no qual inconscientemente fincamos raízes, existem grandes chances de que o sabor te desagrade.
Pelo menos a princípio.
Ontem depois de sentar por mais de uma hora com uma xícara de masala chai em mãos, feito com chá Rooibos ao invés de chá preto porque eu sigo mergulhada numa temporada deliciosamente descafeínada), e refletir com o corpo inteiro buscando sentir se a hora certa de compartilhá-lo era mesmo essa, eu finalmente entendi com o coração a razão de ter adiado essa publicação por tanto, tanto, tanto, tanto tempo.
Medo.
Puro medo.
Nada além de um profundo medo de, ao tocar em um ponto que eu sei ser extremamente delicado, ser por você mal interpretada e quiçá rejeitada.
Mas ainda que parte desse medo siga aqui, a verdade é que eu já não desejo mais ser impedida de colocar um bálsamo subversivamente medicinal no mundo, por mais amargo que os primeiro goles possam ser, por medo do que for.
Um dos ingredientes essenciais na feitura dessa vida radicalmente viva, vagarosa, desejosa, criativa e corpórea que eu proponho e repetidamente te convido a descobrir e criar por você (com a minha ajuda - caso você me permitir) é a coragem de sermos vulneráveis dentro dos espaços seguros de troca que escolhemos estar e honrarmos tanto o nosso sentir como o nosso saber, nos expressando e nos posicionando no mundo com verdade, ora com doçura ora com acidez.
Ora com aquele amargor medicinal de boldo.
Por isso, por mais delicado que seja, eu escolho falar de Mulheres que Correm com os Lobos, a bíblia da selvageria feminina e livro de cabeceira de muitas, e da desintelectualização da selvageria como o caminho para que possamos verdadeiramente conseguir viver, na visceralidade, a experiência naturalmente selvagem de ser mulher em meios aos novos desafios da vida moderna que é infinitamente mais mental do que qualquer outro tempo arquivado no passado.
E por que esse bálsamo viverá na seção um viver criativo e não na seção um viver desejoso?
Porque o nosso grande erro é começarmos a jornada buscando nos conectar primeiro com os desejos que preenchem de suculência a expressão selvagem antes de mergulharmos fundo no exercício prático, e a princípio não tão suculento, do reconhecimento e construção da nossa “identidade selvagem”.
Ainda que a escuta dos nossos desejos mais íntimos importem muito, acredito eu que não são eles que nos levam a criar uma relação verdadeiramente inabalável com a potência da nossa Natureza Selvagem. Afinal desejo, tal qual libido, é altamente cíclico e mutável e está intrinsecamente costurado a fase da vida a qual estamos atravessando.
Acredito eu que o que nos leva a viver uma vida em profunda comunhão com a potência da nossa Natureza Selvagem, tanto quando estamos exuberantes no alto de um belo pico transbordantes de tesão ou quando estamos no mais profundo de um sombrio vale buscando forças para continuar a metamorfose com gosto de morte, é a prática diária e altamente criativa de descobrir e inventar formas variadas de nos sentirmos na pele da Mulher Selvagem que somos.
Quando o assunto é construir uma vida em comunhão com o Selvagem, desejo não é energia motora. Criatividade, curiosidade, vitalidade, comprometimento e paciência são.
Meu desejo mais sincero é que você consuma esse bálsamo até a última gota e se deixe movimentar por dentro e, por ele, ser convidada não só ao questionamento mas também a auto investigação corpórea que o acompanhará.
Bom mergulho!
Um Oráculo.
Mulheres que Correm com os Lobos é um oráculo, fato.
Um livro que sempre que aberto em uma página aleatória nos presenteia com passagens que carregam mensagens ora absurdamente claras e direto ao ponto ora extremamente enigmáticas, oferecendo os conselhos, tapas na cara e ponta-pés na bunda que nós provavelmente precisamos tomar. Ele é um livro que nos impulsiona a olhar os desafios nos olhos, resgatar os fragmentos de alma que foram abandonados ou que ficaram perdidos pelo caminho e nos conectar com a Mulher Selvagem, Velha Bruxa que Sabe, Maga, Loba ou Felina que nos habita.
Mulheres que Correm com os Lobos não oferece alívio. O que ele oferece são palavras catalizadoras que movimentam emoções e sentimentos que estão sendo suprimidos e constantemente forçados a voltarem para as profundezas do mundo subterrâneo e por ali ficarem, quietos, até que seja a hora de uma próxima catarse ou uma próxima consulta ao Oráculo.
Eu e você (caso você seja alguém que já leu ou lê esse livro) sabemos que Mulheres que Correm com os Lobos movimenta nossas águas mais profundas produzindo maremotos internos que desaguam em choros compulsórios que limpam e gargalhadas que libertam. Mas o alívio que sentimos ao chorarmos ou gargalhamos copiosamente não está no livro e sim no Corpo, e é resultado do transbordar desse oceano de emoções que estão constantemente sendo represadas, reprimidas e varridas para debaixo do tapete.
Até aí tudo bem ele ser o livro de cabeceira escolhido pois ele é, sem dúvida, um dos livros mais poderosos já escritos quando o assunto são os mistérios da Psique Feminina. Acontece que, tal qual o anel na história do Senhor dos Anéis, nós nos acostumamos com o poder que esse “objeto” tem de nos fazer emocionar, transbordar, desaguar e momentaneamente sentir alívio. Nós nos viciamos nos tapas na cara que nos fazem despertar momentaneamente do sono profundo que é a vida em desconexão com aquilo de mais selvagem que há em nós e nos tornamos, em maior ou menor grau, dependentes da permissão que ele nos concede para sermos com inteireza a mulher fragmentada que estamos.
Uma permissão para estarmos no meio do caminho, em jornada.
E por que eu digo isso?
Porque o que eu mais escuto das mulheres que eu encontro dentro das bolhas do Autoconhecimento e do Feminino Sagrado é que esse é o livro de cabeceira da grandíssima maioria das mulheres que buscam se reconectar com a energia Selvagem.
Se você não acompanha o meu trabalho há tempos é importante que você saiba que eu também já fui uma mulher que dormia e acordava ao lado de Mulheres que Correm com os Lobos e que andava com essa Bíblia debaixo do braço pregando passagens e capítulos favoritos. E eu não só participei, como guiei grupos de estudo e naveguei faminta cada um dos seus capítulos inúmeras vezes ao longo da última uma década.
A grande contradição
Mas agora eu te pergunto, se Mulheres que Correm com os Lobos é o livro de cabeceira de tantas, quase todas, se tantas seguem lendo, relendo e de novo lendo essa bíblia, por que é que tão poucas se reconhecem verdadeiramente como Selvagens?
Por que é que tão poucas se sentem livres e corajosas o suficiente para se assumirem pro mundo tal qual verdadeiramente estão?
Se quase todas mantém uma conexão tão profunda com ele, por que é que tão poucas conseguem acessar o poder bruto não lapidado e a força avassaladora dessa Mulher que de tão livre corre com os Lobos?
Se o livro fala de nós e da força indomável que vive em cada uma e em todas nós, por que é que a maioria ainda segue olhando para outras mulheres e enxergando nelas claramente a expressão do selvagem e enxergando em si uma mulher não tão selvagem assim, não tão pronta para assumir a sua potência, vestir a sua exuberância e ocupar o seu lugar na roda?
O que eu percebo é ..