Desapegar da pele já despida
Sobre libido, ou a falta dela, e essa vontade que dá de jogar tudo fora
Odeio a palavra deveria, mas deveria,
escrever.
Deveria criar, cuidar da criativa atividade de, com palavras, significar meu mundo. Deveria fazer algo só por mim. Deveria? Deveria dormir, deveria sair, deveria encontrar uma amiga sem um bebê nos braços. Deveria depilar as pernas, colocar um vestido, tirar o bigode para lavar, me levar para passear. Tomar uma cerveja sem álcool, almoçar japonês, aproveitar que, há sete meses, voltei a poder comer peixe cru — e não comi.
Deveria fazer qualquer coisa menos o que, de supetão, decido fazer — o item mais desprovido de urgência da minha lista de pendências que, tal qual os pelos da perna, só cresce.
*
Parece que foi em outra vida.
Abro a gaveta, e mais um passado me espreita — dobrado em pequenas pilhas de renda, recostado nos bojos dos sutiãs, encaixado entre os contornos de quem eu tinha aprendido e vinha gostando de ser: uma criatura libertina, mais selvagem que mulher. As calcinhas rendadas, os sutiãs meia-taça, as meias sete-oitavos, as camisolas curtinhas de cetim que moldavam meu corpo como uma segunda pele. Ecos de uma libido à la Afrodite possível de ser sentida a quilômetros de distância. Um vibrador Lilith em formato de batom, vermelho profundo, um dildo transparente de silicone, frio ao toque, um anel de noivado com um âmbar báltico cor de chama, uma pedra que não é mineral e sim uma resina fóssil de árvores antigas, presente que o dedo anelar direito recebeu em Roma do meu leonino, no topo de uma escadaria, debaixo d’uma copa de árvore antiga, depois de muitas taças de vinho, vermelho profundo, e colheres generosas de tiramisù. E, lá no fundo, bem no fundo, lá, na beira de cair do precipício para dentro do buraco negro que existe no detrás de todas as cômodas do mundo, dois testes positivos de gravidez com seus tracinhos rosados, agora já meio amarelados pelo tempo — todos testemunhas silenciosas do que fui, do que já não estou.
Dá vontade de jogar tudo fora.
Desapegar da pele já despida.
Mandar consertar o anel, colocar a chama de volta na prata, fria ao toque, e guardar os testes positivos dentro do álbum de família analógico à ser feito — uma das urgências da lista de pendências que, diferente da quantidade de taças de vinho recentemente tomadas, só cresce.
Abrir espaço
na vida e nas gavetas.
para os desenhos rabiscados com mãos pequenas e desajeitadas, para os corações tortos coloridos de giz de cera, para os bilhetes escritos com letras que ainda tropeçam e caem no lugar certo na ordem errada, onde um dia estará escrito “mamãe, eu te amo”. Para os primeiros dentinhos que a Fada do Dente virá buscar, para os presentes de Natal escondidos por semanas, para as cartinhas dobradas em origami que juntas aprenderemos a fazer, para a coleção de tesouros e segredos da minha pequena (e maior) Victoria — e não para uma coleção de Victoria’s Secrets.
Abrir espaço para essa nova mulher. A que já não mede o desejo pelo arrepio na pele e o comichão no ventre, mas pelo calor do leite descendo, do coração para a teta, até jorrar corpoafora. A que se preenche do cheiro doce com notas de calêndula da pele suada da filha, que espanta pesadelos com afeto e cura choros no meio da noite. A que, ao sentir o peso de um corpinho pequeno adormecido sobre o peito, ao ser feita de altar de sonhos, encontra Deus e a certeza de já ter chegado onde deveria estar. A que, na mais absoluta entrega, descobre outro jeito de viver o êxtase — e se indulge em um prazer que, ao não arder, aquece.
Dá vontade de jogar tudo fora.
Abrir espaço
na vida e nas gavetas.
Mas não. Respiro fundo e seguro o impulso.
Freio a urgência virginiana de organizar criando tela em branco pro novo pousar, de desapegar do que não está em uso e, sem uso imediato, perde o sentido. Não me livro das calcinhas e sutiãs de renda, dos corpetes e das meias sete-oitavos, guardo os vestígios da vida dessa mulher que existiu antes de mim.
Porque sob a pele nitidamente envelhecida pela privação de sono, sob as olheiras que carregam histórias vividas nas planícies infindáveis das madrugadas amamentando, sob os cabelos já não mais tão volumosos e cheios de brilho quanto durante a gravidez, sob as curvas de um corpo-ninho que se sacia ao nutrir, servir e se doar,
bem aqui,
adormecida,
ela está.
Eu sei que um dia ela acordará.
E quando do sono profundo emergir, encontrará sua gaveta de segredos, intacta. Nem que seja para descobrir que nada mais serve e decidir
jogar tudo fora.
Desapegar da pele já despida.
para, com outro cetim, rendar uma pele nova:
a de selvagem-mãe que, além de mar, é amante.
com um afeto radical,
Verbena
Tem escrito que sai da gente sem trabalho de parto — meio cuspido, meio golfado. Esse bálsamo é um desses escritos. Produzido sem ser antes pensado, digitado sem titubeios e editado na calada da noite, depois de, enfim, responder todos os comentários pendentes, enquanto uma pequena que hoje completa sete meses não dormia no berço, mas cochilava nos meus braços, chupeteando-me.
A maternidade tem dessas coisas: quando menos espaço há para a criatividade, para as brisas, os devaneios, o ócio e a contemplação, mais força a pulsão criativa encontra para se erguer, exuberante, por entre as brechas da falta de tempo.
Ser mãe é dar nó no tempo para criar nos intervalos do que não pode esperar.
Ao engravidar, tive, sim, medo de não conseguir mais escrever, criar e seguir mexendo esse caldeirão borbulhante onde os bálsamos da Vagarosa ganham forma. Quanto engano! Ah, quanto engano! Estou em estado de absoluta graça com o que nós, mães artistas, conseguimos colocar no mundo quando penduramos no varal, de ponta-cabeça e com um durex na boca, o fantasma do perfeccionismo — dormindo três horas por noite. Abismada com a ferocidade visceral desse impulso criativo-criador imparável.
A essência criativa não é algo que compete com a maternidade, mas sim aquilo que a sustenta, nutre e fortalece. Anota aí.
Tendo dito isso, te conto que a próxima edição da sessão Prosa Selvagem está nesse meu caldeirão. Esta, sim, sendo cozida vagarosamente, ganhando camadas, madurez e notas de cereja.
Valerá a pena esperar. Palavra!
É isso. Um forte abraço para quem é de abraço.
Te vejo nos comentários!
v.
Essa mulher meio onça volta, querida Verbena. No meu caso estava voltando (aí fiz outro bebê, por culpa dela) 😂
Mais uma vez escrevendo tudo aquilo que eu não consegui. Senti cada palavra como se fosse uma narração do filme da minha vida. Minha filha agora tem 3 anos, começou ir à creche. Mas já me senti tanto como você. Acho até que eu tinha mais força nessa época do que agora que "ficou mais fácil". Como você disse, "ser mãe é dar nó no tempo para criar nos intervalos do que não pode esperar". É isso, é isso <3 Obrigada, Verbena