Burlar o tempo mordiscando um Rivotril
Realidades fabricadas e brain rot — que força é essa que nos prende a esses ciclos de distração, insatisfação e vazio, incapazes de simplesmente parar e pular fora?
Sento na varanda da casa da minha irmã, onde estou hospedada desde antes do Natal, para prosear com uma amiga que não vejo há mais de três anos. Temos muito sobre o que falar: vida, morte, doular a morte e dar à luz outra vida.
Regada a chá de hortelã do quintal, a prosa flui sem nenhum esforço, um assunto leva ao outro e conversamos de parto, trabalho de parto, puerpério, gestação, amamentação, hemorróidas, quase divórcio (meu), novo namorado (dela), vida em Belo Horizonte, Brasil, saúde pública na Irlanda.
Lá pelas tantas, quando a conversa já foi transferida da varanda para a sala e da sala para o quarto, e eu me encontro recostada na cama tentando amamentar uma bebê de quase seis meses que facilmente se distrai do leite e perde o foco da teta, começamos a falar de Instagram e da minha decisão de, literalmente do dia para a noite, abandonar minha ilusãozinha de micro influenciadora e agora estar há um ano longe dele, me dedicando ao resgate feroz da minha capacidade de escuta e sustentação da presença.
Ela então me conta que durante o velório da irmã — que, na trágica loteria da vida, foi sorteada com um dos tipos mais raros e devastadores de câncer —, uma amiga dela, influenciadora digital dessas nada micro, com 300 mil seguidores e uma vida aparentemente perfeita, a chamou de canto e perguntou, sem nenhuma cerimônia, se ela queria um remedinho.
Sem entender, minha amiga respondeu:
— Como assim?
E foi então que a amiga influencer, sempre impecável diante das câmeras, disse com naturalidade:
— Ah! Sabe como é, né? Nos dias em que não estou muito bem, dou aquela mordiscadinha num Rivotril. Se você quiser, te passo o contato de uma farmácia que vende sem receita.
Minha amiga que esteve ao lado da irmã durante o processo desafiador de assistir a vida rapidamente dando lugar a morte, testemunhando dia após dia um corpo, até então saudável, perder sua autonomia e doulando a jornada de volta ao mundo espiritual, recusou o paliativo. Mas aquele encontro e aquela oferta, a possibilidade de uma mordiscadinha num Rivotril, desnudou algo poderoso: por trás da cortina da vida invejável de uma influenciadora de sucesso, que talvez você siga, existe o uso não controlado e um tanto banalizado de um remedinho tarja preta.
*
Sento à mesa ao lado da minha irmã para um café coado e gargalhadas. No quarto, soneca uma pequena com a barriga cheia da sua primeira papinha. Conversa vai conversa vem, resgatamos na memória duas amigas queridas da nossa infância, também irmãs, que estão se tornando micro influenciadoras de moda. Porque elas são pessoas importantes na minha história de vida, acho graça quando minha irmã abre o Instagram para me mostrar alguns dos vídeos que elas tem produzido juntas. Elas levam jeito, esbanjam estilo e carisma, e me arrancam sorrisos do rosto. Começamos ali um papo sobre influenciadores e a loucura que é essa coisa, né? Toda essa pré produção por detrás da produção de conteúdos que em poucos dias, às vezes poucas horas, se perdem no limbo do esquecimento.
— Lembra da fulana, Bena? — ela me pergunta.
Então, ela deixou o emprego para ser influenciadora, porque começou a ganhar mais grana vendendo cursos sobre investimento na bolsa de valores do que recebia de salário.
Até aí, problema nenhum. Não tenho preconceito com quem vende curso e acredito que, contando que o curso entregue o que promete e que a venda seja transparente e livre de gatilhos, é isso aí — estamos todos aqui para vender, no formato que for, aquilo que sabemos fazer bem.
Ótimo para ela! — penso eu, já levemente mordiscada pelo bichinho da comparação.
— Só que você não vai acreditar — diz minha irmã, pousando a xícara de café na mesa. Há alguns meses, reparei uma mudança no estilo de vida dela, e não foi pequena. Ela passou a aparecer nos stories em uma casa que parece saída de um filme. Ora de pijama, na cama num quarto impecável; ora tomando café numa cozinha dos sonhos, ora malhando numa varanda com uma das vistas mais bonitas de Belo Horizonte; ora numa sala enorme, lendo um livro, com fotos dos filhos ao fundo mas sem uma mísera boneca ou peça de lego no chão. Só que recentemente, numa conversa com uma outra fulana que segue bem próxima dela, eu descobri que essa casa onde ela grava os stories não é a casa dela. Acredita? É um set de filmagem que ela aluga.
Lá, nesse cenário de fachada, a influenciadora cuidadosamente constrói a narrativa de uma vida de luxo que nem ela vive, mas que parece possível e alcançável para todos. Ou melhor, para aqueles que comprarem o curso dela.
Nós estamos sendo enganados, percebe?
Eu, você, minha irmã e minha amiga.
Todos nós.
Todos os dias.
Encaramos nossos telefones-extensão-do-corpo e comparamos o emaranhado de nossas vidas reais com uma realidade-espetáculo fabricada. Lemos as entrelinhas do sucesso alheio, medimos nossos dias imperfeitos contra cenários estrategicamente iluminados e fragmentos cuidadosamente roteirizados, e nos convencemos de que estamos fracassando.
Que falta algo em nós.
Que aquilo que somos não é suficiente.
Que aquilo que sabemos ser é pequeno demais.
Não sou ingênua de achar que esses são casos isolados. Pelo contrário. Sei que são só dois exemplos, certamente não os mais graves, de um comportamento sintomático que sustenta a engrenagem dessa cultura de influência manipulação.
Eu mesma, no auge da minha piração entrega à criação de conteúdo, onde cada azulejo da vida virava um gancho para uma interação com a minha audiência, decorei a sala de estar do meu apartamento em Dublin pensando não em transformá-la em um cantinho aconchegante da casa, e sim em fazer dela um pano de fundo minimalista para lives e para os vídeos de dança que eu postava todo dia de manhã.
Hoje, ao lembrar da impecabilidade e frieza daquele cômodo de fachada, habitado quase que exclusivamente em momentos instagramáveis, eu sinto calafrios.
E, justamente por sentir calafrios, eu relutei em começar o ano escrevendo sobre essa perfeição plástica que continua sendo vendida como sinônimo de sucesso; essa imagem fabricada que tantas pessoas continuam acompanhando diariamente, enquanto comparam suas vidas comuns e imperfeitas a esse espetáculo cuidadosamente encenado por pessoas cada vez mais alienadas dos danos catastróficos que todo esse teatro está nos causando.
Mas cá estou eu.
Celebrando um ano inteiro longe do Instagram, curada do meu vício de gravar e assistir pular stories, de atravessar e ser atravessada ininterruptamente por fragmentos, escolhidos a dedo, da vida alheia de sei lá quantas centenas de pessoas, e olhando nos olhos dessa ferida gangrenada do nosso tempo.
Porque talvez, só talvez, ao escrever sobre essa ferida, dessa tessitura de palavras nascerá um portal capaz de nos tirar desse ciclo vicioso de insatisfação, consumo, distração e vazio.
Um mito bastante perigoso.
A “vida perfeita” não é apenas nos vendida como um ideal desejável; ela é empurrada como algo possível, ao alcance de todos, desde que nos esforcemos o suficiente ou de que a gente consuma o produto certo. A ideia de que o sucesso, a cura ou a resolução de uma questão, pela via do imediatismo, está disponível para qualquer um de nós transforma a caminhada real — que exige tempo, paciência e muita, muita dedicação — em algo obsoleto. Nos convence de que, se não estamos vivendo grandes conquistas agora, estamos fracassando.
Crescer leva tempo. Construir algo com propósito leva tempo. Descobrir a potência da própria voz leva tempo. E, enquanto corremos atrás de atalhos para o sucesso, esquecemos que o néctar da vida, aquilo capaz de nos nutrir com preenchimento, contentamento e satisfação, brota dos instantes dentro dos quais nos permitimos existir com uma presença radical.
A suculência que dá sabor a vida está no café que esfria porque a conversa foi boa demais para ser interrompida, ou no chá que é cuspido longe porque a gargalhada não pôde ser contida. No sol que invade a sala bagunçada, cheia de brinquedos e meias espalhadas, todos testemunhas de um dia vivido com plenitude em meio ao caos que é a vida na casa de quem tem filho pequeno. Nos momentos ociosos, onde aparentemente nada acontece.
Nas pausas.
E esse desejo de apressar a vida, de pular etapas e forjar narrativas, não nos esgota apenas emocionalmente. Ele nos afeta de maneira um tanto mais profunda, mais silenciosa e problemática. Essa obsessão por estímulos rápidos, por uma perfeição contínua e ininterrupta, nos aprisiona em um estado de constante insatisfação, distração e desgaste.
E é nesse cenário que uma expressão tenebrosa vem ganhando força, embora nem sempre compreendida em sua gravidade:
o tal do brain rot.
O apodrecimento do cérebro.
Me parece alarmante como rapidamente normalizamos o uso de termos que carregam significados profundos, quase como se quiséssemos disfarçar sua gravidade. Brain rot é o apodrecimento do cérebro, a corrosão da mente e o desgaste cognitivo. E o que deveria nos fazer parar para refletir já está sendo jogado de um lado para o outro como um meme cotidiano. No sofá rolando o feed sem parar? Brain rot. Assistindo a vídeos curtos e desconexos por horas? Brain rot.
Mas, no fundo, esse desgaste cognitivo e a incessante busca pela perfeição são sintomas do mesmo mal: a superficialidade que nos foi vendida como fonte de preenchimento. Ambos refletem uma mente que se perde entre a necessidade de parecer produtiva e a incapacidade de se desconectar. Ambos são tentativas de preencher um vazio — com filtros, likes, aprovação e um scroll infinito — enquanto o essencial, o profundo, o poético e o real, vão se perdendo.
Quando trivializamos o termo brain rot, aquilo que na verdade é um total esgotamento provocado por estímulos incessantes e desconexos, perdemos a grande oportunidade de encarar o problema de frente. Transformamos um sintoma alarmante em piada e esquecemos de perguntar: o que está acontecendo conosco? Que força é essa que nos prende a esses ciclos de distração e vazio, incapazes de simplesmente parar? Pular desse barco em vias de naufragar? Levantar acampamento e nos mudar de vez desse campo minado?
Acredito eu que, no fundo, tudo é parte de uma mesma célula cancerígena. A cultura da influência cada vez mais alienada das grandes responsabilidades que esse lugar de poder traz, o espetáculo da perfeição de fechada e a normalização do esgotamento mental são facetas de um mundo que se habituou a nos exigir pressa, nos roubar o tempo da profundidade e nos iludir com muletas e atalhos que acabam por nos manter anestesiados andando em círculos; alimentando a ideia de que precisamos ser mais, fazer mais, aparecer mais, consumir e produzir mais, enquanto a essência do que realmente importa se dissolve junto com nossos cérebros — deixados no tempo to rot.
Para, literalmente, apodrecer.
Talvez seja mesmo a hora de parar.
De desconfiar dos cenários perfeitos e aceitar que a vida real não precisa de filtros e roteiros para ser bela e recheada de interessância. A vida verdadeira não é sobre chegar mais rápido ou parecer mais bem-sucedido; é sobre o que acontece enquanto nos dedicamos a lentamente construir e viver nossos sonhos, ora errando, ora aprendendo e, às vezes, simplesmente existindo.
Entendendo que brain rot não é só sobre o tempo que perdemos distraídos e a profundidade que deixamos de experienciar, é sobre o que acontece quando cada instante da vida é preenchido com barulho e, por ruídos, é corroído. É sobre o vazio existencial que cresce alimentado por uma ansiedade crônica, enquanto a mente, esgotada, desiste de resistir.
Se queremos combater o brain rot, precisamos reaprender a pausar. A nos desconectar da superficialidade para mergulhar, de corpo e alma, naquilo que nos é essencial. Que nos alegra, nos diverte e nos faz sentir radicalmente vivos.
Para mim, importa o café que esfria porque a conversa era boa demais para ser interrompida. Importa o abraço que desmonta a resistência, a gargalhada descontrolada que, nesses meses de pós parto e assoalho pélvico frouxo, faz o xixi escapar, a bagunça da casa e da vida que conta as histórias que estão, com uma entrega absoluta, sendo vividas.
A vida perfeita, no fundo, é aquela costurada com os fios multicoloridos da imperfeição humana. É aquela que aceita o tempo dos processos e da construção, que acolhe os tropeços, tombos e crises e celebra o caminho — mesmo quando ele é extremamente lento e sem platéia.
Então, talvez, a maior revolução seja sim desacelerar e se desconectar, de uma vez por todas, das redes que nos adoecem.
Olhar para nossas vidas reais, com suas falhas e suas belezas miúdas, e entender que o extraordinário já está aqui. Quieto, discreto, mas absolutamente nosso. E, mais importante, livre e longe da influência desequilibrada de quem segue vivendo para parecer em vez de vivendo para oceanar aquilo que verdadeiramente se é.
Com um afeto radical,
Verbena
Em breve você receberá a segunda carta medicinal da sessão Prosa Selvagem — explorações indulgentemente poéticas sobre as dádivas e os desafios de, nas entrelinhas da modernidade, se dedicar à criação de uma vida radicalmente viva, criativa e em profunda comunhão com sua Natureza Selvagem. Nessa próxima edição responderei uma pergunta que, acredito eu, você deva estar se fazendo diariamente.
A Prosa Selvagem é um benefício extra, oferecido àqueles que viabilizam a continuação do meu trabalho e fazer artístico e fazem essa roda de medicina girar. Para ler os bálsamos dessa sessão na íntegra, mergulhar nas práticas propostas e sentar ao meu lado na roda — adentre as terras radicalmente férteis da assinatura paga, clicando aqui.
esse assunto me pega demais. eu entendo que num país como o nosso, tão desigual, a proposta de enriquecimento fácil seja muito tentadora. são tantos os discursos de “milionário antes dos 25” circulando por aí, mas quando você vai ver o “como”, tem sempre um golpe ou um trabalho irresponsável por trás. e eles simplesmente não se importam, o que interessa é ficar milionário. me pega também porque ainda estou por lá e não consigo (ainda) me ver fora por (ainda) acreditar que meu trabalho depende daquele canal. mas resisto e sigo fazendo do meu jeito. o engajamento cai, os stories tem poucas visualizações (quer dizer.. será? ou será só mais um padrão doido de comparação que cristalizei?), mas tem uma galera fiel que me acompanha de verdade e são meu totem pra quando a comparação chega e começa a me fazer querer sumir.
mas esses dias o dono da Meta disse que vai abolir as políticas de moderação de conteúdo… basicamente, tudo será permitido e quem dirá se o conteúdo é impróprio ou não somos nós. já prevejo uma bagunça e uma hostilidade chegando… aí não será mais possível tentar ficar apesar de.
seu texto me provocou bastante. remexeu muita coisa aqui. ainda não tenho conclusões, só mais dúvidas 😂 mas o que eu queria mesmo era estar nessa mesa tomando café e fofocando com vocês❤️🔥
Que leitura incrível, vou indicar na minha próxima edição. Como designer de interiores tenho refletido sobre a constante pedida de um ambiente que seja "instagramavel". Me parece tão ridículo priorizar uma rede social na hora de criar um espaço, em vez de pensar noa inúmeros aspectos que podem o fazer agradável para a vida presente. Amei demais suas reflexões, e suspiro com suas narrativas radicais.