Ser cúmplice do tempo.
O que uma década de vida no estrangeiro não me ensinou sobre essa tal Liberdade.
Te olho nos olhos.
Um Oceano Atlântico nos separa.
Descanso na imperfeição da memória que o tempo não deixou intacta e com os dois pés fincados na areia, endurecida e umedecida pelo mar que nessa hora entardecida do dia suaviza em maré baixa, busco daqui desse lado que pra você ainda é território desconhecido, te sentir.
Um exercício desafiador já que existe muito mais do que só um oceano entre nós.
Aí é Outono.
E aqui, Primavera.
Carregado pelo vento que transporta além de partículas de sal o perfume das inúmeras variações de pólen produzidos pelas incontáveis florzinhas, responsáveis por encher de cor o verde que abraça o mar que você está prestes a atravessar, eu sinto o seu aroma — limão siciliano misturado com o suor que pinga das suas mãos trêmulas.
Seu cabelo é curto, sua franja é irregular e seu sorriso largo não deixa transparecer as notas de imaturidade que há no seu sabor.
Ninguém sabe do seu segredo.
Ninguém sabe que você está com medo.
Nenhum alguém suspeita que ao conjugar o verbo viajar você estará fugindo e que em você já existe a absoluta certeza de que você não voltará.
Seu destino é ser uma mulher estrangeira.
E no sentir, você já sabe.
Se jogar no mundo sozinha, sem falar a word do idioma da ilha onde você pousará é infinitamente mais fácil do que permanecer no conhecido e se reerguer debaixo da mirada dos seus vizinhos, amigos e colegas de profissão, não é?
Eu sei.
Mas ninguém mais sabe.
Você disfarça bem.
A carreira de bailarina que você está deixando para trás e os anos estudando teatro te equiparam bem, você não só não deixa sua dor transparecer como parece forjada no ferro e soldada na auto-confiança. Ninguém imagina que por dentro você está quebrada e que isso que parece um belo grito de liberdade de uma jovem mulher recém divorciada é na verdade uma fuga planejada.
A fuga que antes de te salvar, te partirá.
E te levará um tanto mais profundo.
Essas botas recém compradas que você carrega nos pés desconhecem o quanto irão andar pelo mundo e o quanto irão tropeçar nos percalços que a vida instalará no seu caminho para que você cresça e amadureça. Você não sabe, mas depois que seu creme acabar seu cheiro mudará e ele nunca mais voltará a ser o mesmo.
Você nunca mais será a mesma.
Seu cabelo crescerá, limão siciliano será história passada e só quando você enfim desaprender a arte de parecer ser feita de ferro, você irá florescer.
Mas não sem antes viver uma depressão.
E não sem antes se esquecer completamente do endereço onde cada uma das suas forças vivem.
Você não precisa trazer esses livros que estão na sua mala vermelha de rodinhas por temer a solidão e a falta de companhia; você não se sentirá sozinha e passará anos sem ler em português. A vida será sua grande companheira e esse idioma que você hoje não fala uma palavra será a língua que daqui a uma década você estará aprendendo a ensinar os outros a falarem.
Aqui estou eu, dez anos mais velha.
Para de dizer que você deveria sentir orgulho da jovem mulher de vinte e quatro que você é.
E esse fim de casamento é na verdade só o fim de um primeiro — pois haverá outro casamento.
Outro vestido branco, outro buquê, outra cerimônia, outras testemunhas e dessa vez a celebração será com pizza, brigadeiro e cerveja irlandesa e sua família estará presente via FaceTime.
Mais cedo do que você imagina você se apaixonará por um homem que a princípio não faz seu tipo e que não vive na sua bolha de artistas, vocês se comunicarão em quatro idiomas e ele não te deixará guardar sentimento e opniões no peito — ao falar tudo que pensa e sente ele te ensinará a desobstruir o chakra da garganta.
Essa desobstrução será uma revolução.
Ele te expandirá os horizontes, uma viagem por vez, e te apresentará cantos remotos desse planeta azul que nem nos seus melhores sonhos você imaginou que conheceria.
Você ainda não sabe mas além de geógrafo, ele é cartógrafo, guia de montanhas, piloto de parapente, um exímio cozinheiro e a pessoa mais impaciente que já habitou esse planeta.
Essa impaciência será desafiadora.
Você nunca mais falará com o marido que carrega o título de ex, um pisciano ilustrador irremediavelmente sonhador, pelo menos não no plano físico. Ele morrerá em alguns poucos anos de um ataque cardíaco fulminante, deixando uma filha pequena e outra mulher com nome de flor viúva.
Ele te aparecerá em sonho para te pedir que você se encarregue de procurá-la e faça as pazes com o passado que vocês três dividem, e te dirá que já que ele não está mais aqui é sua responsabilidade dar o primeiro passo e assegurar pra ela que nada do que aconteceu é culpa dela, e que a história de amor que eles iniciaram quando vocês ainda estavam casados foi uma intervenção divina para que cada um pudesse seguir em frente e viver aquilo que estava destinado a viver.
Eles juntos.
Vocês separados.
Quando ele morrer você não chorará.
Pois você ainda se acreditará feita de aço.
Mas o luto chegará anos depois dessa morte súbita, quando você estiver na Islândia em um Agosto inesquecível, com uma mochila quase do seu tamanho nas costas e uma outra bota já um tanto gasta nos pés, cruzando a pé paisagens que parecem pertencer a outro planeta, atravessando geleiras e avistando vulcões no horizonte, totalmente enamorada do seu segundo marido — esse leonino sem papas na língua, irremediavelmente aventureiro e realizador.
Você fechará os olhos e agradecerá aquele pisciano por ter divido um pouquinho da vida com ele e pedirá desculpas, porque enfim entenderá que você também errou. E o que você está sentindo agora, essa falta de chão misturada com raiva soterrada e um grito engolido, não é culpa nem dele nem dela. Em alguns tantos anos a palavra culpa desaparecerá do seu vocabulário e você passará a contar a história do fim do seu primeiro casamento de outra forma e não mais se verá como vítima da história.
Seu ventre, agora ressecado pela escassez de libido e auto-amor, carregará dezenas de projetos artísticos e fertilizará o mundo com a escrita corpórea que será a grande responsável por te desenferrujar e te visceralizar até chegar a boa hora de você ser além de uma mulher poeta, mãe de uma menina selvagem.
Você florescerá exuberante, esbanjante em suculência e aprenderá a estar totalmente a vontade dentro desse Corpo de Fêmea.
Você não mais será obcecada com seu peso e seus pêlos, passará anos sem subir numa balança e vestirá biquíni em público sem estar depilada.
Seus pêlos não clarearão.
Mas sua mente eventualmente clareará.
Entra nesse avião e vem, saiba que ele não cairá.
E você, sempre que cair, do chão não vai passar.
Te olho nos olhos.
Um Oceano Atlântico nos separa.
E esse seu cheiro de macadâmia não me engana.
Você também sente medo.
Finco meus pés no chão dessa terra que em sua familiaridade pela primeira vez me aprisiona ao invés de me libertar; em uma mão suada seguro o passaporte que comprova a única nacionalidade que tenho sem imaginar que em alguns anos você terá uma outra que te abrirá portas mundo afora.
Alguns aviões já decolaram, o meu não demora decolará e entre aqui estar e aí chegar eu viverei horas aéreas que parecerão anos. Recosto minha cabeça na poltrona e fecho os olhos, descansando na imperfeição da imaginação, buscando te sentir.
Você aprendeu a dirigir.
E desaprendeu a acelerar.
A liberdade que eu buscava, você conquistou.
E hoje é ela quem te aprisiona.
Você não está com o coração dilacerado mas não é a mulher adulta de trinta e quatro que imaginou que seria e isso tem te inquietado o coração.
Estabilidade financeira pela primeira vez é uma preocupação e no ar, alguns milímetros sobre a sua cabeça adornada por cabelos longos, paira uma interrogação. Gestar uma criança tem te feito pensar se essa uma década de trabalhos múltiplos e aleatórios que pagaram as contas, te permitiram viver bem e te proporcionaram toda a liberdade e flexibilidade que você precisava para viajar e se dedicar a escrita e aos seus projetos criativos, mas que não te fizeram alcançar a tal estabilidade financeira, foram uma escolha sábia. Será?
Aqui estou eu, dez anos mais nova.
Para te dizer que você deveria sentir orgulho da jovem mulher de trinta e quatro que você é.
Você não sabe, mas esse mesmo ventre que agora está recheado de fertilidade, vida, movimentos e soluços de bebê, produzirá toda a força criativa que você precisa para seguir sendo artista e empreendedora em um mundo que ainda que se nutra, se cure, se renove a se encha de esperança através da arte, não valoriza quem se dedica a sua feitura — essa gente louca que já nasce incapaz de conjugar o verbo desistir.
Você pertence a esse bando.
Mesmo que há dez anos esteja fora da bolha.
Se você ouvir o pulsar suave no seu coração e aceitar o convite que a vida está te oferecendo para mergulhar fundo no ofício da maternidade, você encontrará todas as formas de estabilidade que precisa para permanecer sã em meio a sua deliciosa loucura.
A sua relação com dinheiro está prestes a mudar e assinar essa abertura de conta conjunta não é sinal de fracasso. Não deixe isso te tirar o sono.
Você já sabe que não é feita de aço e forjada no ferro, agora chegou a hora de aprender que não precisa ser uma mulher independente e que seu valor não é medido pela sua capacidade de sempre dar conta do recado e pagar suas próprias contas sem depender ou dar satisfação pra ninguém.
Você e seu leonino já não são mais um casal.
Vocês são uma família e família dá conta do recado junto, trabalha como um time, se ajuda e se completa. Chegou a hora de aprender a depender, nem que seja um pouco, nem que seja uma dependência homeopática, temporária.
Você não sabe, mas a vida que pulsa viva em cada canto no qual seu olhar poético pousa está de convidando a descosturar a palavra Liberdade da palavra Independência e descobrir como ser livre enraizada numa relação de colaboração e interdependência.
Sua filha em dez anos te perguntará:
Mamãe, o que é liberdade?
Eu espero que ela, aquela mulher de quarenta e quatro que sabe se lá de onde agora nos olha nos olhos, responda que Liberdade é ser parte singular de um todo inseparável que só floresce e frutifica quando em estado de interdependência e reciprocidade. Liberdade é não se humanizar a ponto de deixar de ser Natureza.
Desenraiza o pé dessa areia amolecida e umedecida pelo mar que nessa hora amanhecida de um novo dia se expande em maré alta e vai, coloca seu barco nessas águas e mergulha fundo em mais esse Oceano Atlântico de aprendizados.
Contempla seu marido aventureiro entrar num caiaque inflável e remar sozinho enquanto você fica na praia tomando sol no bico do peito, bebericando água de coco de caixinha e escrevendo medicina enquanto escuta sua neném te chutar.
Logo mais ele te ligará dizendo que o vento mudou de direção e ele decidiu remar até o fim do único fjord da Irlanda e precisa que você dirija 45 minutos numa estradinha de interior dessas cheias de ovelhas e estreita que só, para resgatá-lo de mais uma aventura em um canto remoto dessa ilha que hoje te é tão familiar. Você irá de bom grado.
Afinal, está decidida a aprender a ser uma livre mulher interdependente — hoje ele é o marujo e você é a equipe de resgate. Amanhã?
Ninguém sabe.
Com um afeto radical, para você .
Verbena Cartaxo.
Para você, Leitora.
Te convido a se encontrar com aquela mulher que um dia você foi e, ao olhá-la nos olhos, dizer o quanto você se orgulha dela. Era medo o que ela sentia? Insegurança? Pura coragem ou só imaturidade? Quanto anos você precisa regressar até conseguir estar com ela em total presença? Dez? Cinco? Dois? Vinte? Faça essa viagem no tempo e sinta a inteireza dessa sua versão passada, se olhe nos olhos com curiosidade e descubra onde é que moravam as grandes forças e potências dessa outra mulher. Qual Oceano Atlântico de aprendizados ela precisou atravessar para que você esteja aqui, agora? Frequentemente a heroína do nosso passado fica arquivada no tempo sem jamais receber as honras por todos os seus feitios.
Saiba que cabe a você celebrá-la.
Volte no tempo e viva esse experimento, escreva os insights obtidos no seu diário se assim você desejar ou me dê o prazer de ler sobre a sua viagem nos comentários desse bálsamo. Esse é um espaço seguro onde, você e eu, podemos nos abrir — saiba disso.
Para você, Escritora.
Te convido a habitar em paralelo dois tempos e dar vida a uma conversa entre quem você foi e quem você se tornou. O que essas duas mulheres tem para dizer uma para a outra? Quais inquietações elas tem o poder de amenizar, em reciprocidade? Suspenda o véu que impõe linearidade ao tempo e transite livremente entre o que era, tudo que aconteceu e o que está acontecendo. Olhe quem você está e quem você foi nos olhos e faça as pazes com o todo da sua história — escreva se tornando amiga e cúmplice do tempo.
Se você decidir publicar a escrita que nascerá desse experimento, me conte. Eu desejo, com cada célula do meu corpo, ter o prazer de te ler e mergulhar com você nesse resgate.
Esse é um espaço seguro onde, você e eu, podemos nos expandir — saiba disso.
Entre para a Prosa.
Dentro da intimidade da assinatura paga do Vagarosa, uma comunidade de leitoras e escritoras radicalmente vivas, viscerais e criativas, floresce.
A Prosa é a terra fértil onde eu derramo o suprassumo da minha medicina e planto guianças valiosas sobre a arte de viver e escrever a partir da nossa mulheridade visceral, ancoradas na sabedoria do Corpo e em profunda comunhão com aquilo de mais Selvagem que há em nós.
Para plantar suas raízes nessa terra fértil, acessar o acervo completo de bálsamos, as guianças sobre escrita selvagem ancorada na visceralidade do Corpo e sobre a arte de se auto publicar no Substack, participar dos encontros ao vivo, acessar o espaço exclusivo de trocas das integrantes da Prosa e ser profundamente nutrida pela minha medicina e presença na sua vida, clique aqui e escolha uma das opções de assinatura paga.
quem te escreve?
Verbena Cartaxo é costureira de palavras, alquimista dos sentidos, professora de escrita selvagem, ex-bailarina eterna mulher movimento, mãe de uma neném metade brasileira metade polonesa que ainda está no forninho, dona de casa que se recusa a usar aspiradores de pó e voa de vassoura, capitã da Prosa e a mulher intencionalmente desacelerada que jardina as terras férteis da Vagarosa — uma publicação patrocinada por suas leitoras. Desde 2019 publica sua escrita de forma independente, facilita vivências com foco no despertar da sabedoria do Corpo e guia mulheres ao redor do mundo de volta pro abraço-casa de suas Naturezas Selvagem.
Que texto maravilhoso, me vi muito nele. O quanto é bonito o seu modo de escrever, de certa forma pra mim este texto foi uma meditação guiada daquelas que nos acalma e nos leva a pensar. Obrigada Verbena!
E lendo você descosturando a palavra Liberdade, fiquei com vontade de compartilhar com você o curta que dirigi quando tinha 22 anos, é também uma carta de amor para minha mãe e se chama “My favourite things ou Liberdade”
https://vimeo.com/14493321