Hoje peço licença para te escrever com menos poesia — mas não de um lugar menos poético — e te trazer pros meandros dos meus estudos e pro coração da minha maior obsessão: a experiência radicalmente viva de ter ser um Corpo que sente.
Ao longo das próximas cinco semanas, sempre as quartas-feiras, te convidarei a adentrar um território experimental que venho cultivando há anos, movida por uma pergunta que é a bússola do meu trabalho: o que acontece quando, em vez de apenas pensarmos o corpo enquanto receptáculo de uma consciência em busca de transcender a matéria, permitimos que ele se torne o centro do nosso saber, espiritualidade e presença no mundo?
Esse mergulho talvez ressoe especialmente em quem anda passando tempo demais na cabeça, ou sente que vive um certo desalinho entre corpo e mente — em quem intui que há uma escuta mais ampla possível, mas ainda se percebe atravessando o mundo em modo automático, com o sentir sempre em segundo plano. Pode ser um chamado para quem se interessa por práticas somáticas, por criação sensível, por espiritualidade encarnada — mas também para quem, mesmo sem saber explicar por quê, sente no fundo do peito que há um outro jeito de habitar o corpo e o tempo. Esse primeiro ciclo criativo do Vagarosalab é para quem deseja afinar a percepção do que pulsa por dentro, e deixar que o corpo, por fim, passe a ser guia.
Seselelame: uma dança contínua onde nos tornamos parte do tecido vivo da existência
Nos acostumamos a perceber tudo com certo distanciamento — a analisar antes de sentir, a organizar o oceano de emoções que nos atravessa antes de realmente habitá-lo. Fomos ensinadas a entender o mundo apenas pelo que é traduzível em lógica. Mesmo quando buscamos no corpo um lugar de morada, o fazemos com cautela — como quem o observa de fora, como se ele estivesse separado daquilo que realmente somos.
Mas compreender o corpo não como um destino ocasional, e sim como o próprio solo da nossa experiência, exige uma reorientação de rota profunda — precisamos tirá-lo desse lugar de mero suporte biológico e instrumento da mente e deixar que ele se manifeste como um território sensível, vivo, onde o eu se encarna, sente, responde e, em comunhão com a vida, cria.
A modernidade, ao privilegiar o pensamento racional, fragmentou nossa percepção e marginalizou formas mais amplas de saber. Nesse cenário, o livro Radical Wholeness, de Philip Shepherd, surge como um chamado para restaurarmos a inteligência sensível do corpo como caminho de presença e escuta ampliada.
Inspirado pela cosmovisão do povo Anlo-Ewe, Shepherd traz o conceito de Seselelame — uma palavra que pode ser traduzida como “feel-feel-at-the-flesh-inside” ou “sentir-sentir-na-carne-por-dentro”. Não se trata de uma percepção racional ou mesmo emocional, mas de uma consciência encarnada que dissolve as fronteiras entre mente e corpo, dentro e fora, eu e ambiente. Os sentidos, nesse contexto, não são meros canais de informação — são membranas vivas, por onde o mundo nos atravessa e onde nos tornamos parte do que está ao redor.
Essa porosidade não é metáfora — é prática viva, ainda que adormecida pelos condicionamentos do nosso tempo. Limitamos os sentidos aos cinco tradicionais e os reduzimos à função de transmissão de dados para uma mente abstrata. Assim, sustentamos a falsa noção de que somos entidades separadas, ilhadas da vida que pulsa ao redor. Ao nos convidar de volta a esse campo mais amplo de percepção, Shepherd propõe uma escuta porosa, onde o corpo não apenas percebe, mas participa. Uma escuta em que os sentidos se tornam pontes — entre o que pulsa dentro e o que vibra fora, entre o presente vivido e as camadas sutis que ainda não sabemos nomear.
Mas para que essa escuta floresça, é preciso reconhecer como fomos, ao longo do tempo, condicionadas a nos fechar. O tempo moderno — com sua velocidade exaustiva, sua enxurrada de estímulos e a exigência constante de produtividade — nos treina para funcionar em modo de sobrevivência, e não de presença, levando-nos a endurecer, filtrar e desconectar. Esse fechamento, porém, não nasce apenas do ritmo acelerado da vida contemporânea; é também fruto de uma construção cultural profunda, que há séculos opõe mente e corpo, ensinando que a razão deve dominar a carne e que o pensamento é superior ao sentir. Educadas a confiar mais no que se pode explicar do que no que se sente, afastamo-nos gradativamente da escuta viva do corpo, tratando-o como instrumento a ser controlado, e não como fonte legítima de saber.
Ao nos fecharmos, perdemos acesso a essa inteligência sensível, radicalmente encarnada, que habita a intimidade da carne e sustenta a presença, a criatividade e a vida em sua plenitude.
Por isso, o convite deste primeiro ciclo criativo do Vagarosalab é o da abertura — não uma exposição sem filtro, mas uma escuta afinada que faz do corpo um terreno fértil para a criação.
Inspirado pelo conceito de Seselelame e pelas minhas próprias práticas e investigações ao longo dos anos — sempre buscando uma forma mais encarnada, sensível e radicalmente viva de existir — nasce este primeiro ciclo criativo, que começa hoje mesmo, logo ali depois da paywall.
Para participar, se torne uma das apoiadoras e Guardiãs da Vagarosa. Ao escolher a assinatura paga anual, além de desfrutar desse e dos próximos ciclos criativos que acontecerão, você também estará presenteado uma mãe solo com a possibilidade de desfrutar dessa mesma experiência — 3 mães já foram presenteadas!
Será um prazer ter você no Vagarosalab e te conduzir nessa travessia que nos levará a explorar cinco sentidos em sua dimensão mais sutil e expandida: um olhar que vai além do foco, percebendo o mundo em sua totalidade; uma escuta que capta não só sons, mas vibrações internas e pausas invisíveis; um tato que nos ancora no presente, sentindo o corpo e o chão que o sustenta; um olfato que desperta memórias profundas e afetos guardados na carne; e um paladar que transforma cada sabor em um gesto de presença e enraizamento.
Cada envio semanal será um convite para entrelaçar sentidos, sensações, escrita e criação, numa dança contínua de presença e abertura, onde nos tornamos parte do tecido vivo da existência.
Te espero dentro do lab.