Gonçalves, 16 de janeiro de 2025
Meus pés tocam a grama, meu corpo é de madeira e fui feito para sentar-se sobre. Quando, sobre mim, você conjugar o verbo descansar enquanto encosta suas costas na criatura folhosa que te cobrirá em sombra, você avistará a direção para onde deve seguir. Caminhe até não poder mais e então, só então, olhe para baixo. Na meiúca de um dos centros da criaturinha folhosa que você irá encontrar no pé da fortaleza de barro que te impossibilita seguir adiante, está aninhada a próxima pista que te aproximará do tesouro.
— Nooooooooooooosa, tia!
De longe, escuto a exclamação. Com um mapa, desenhado com o lápis da falta de paciência, em mãos, busco encontrar a primeira das pistas criadas pela sua prima ariana. O mapa que eu desenhei, e que a levou até a primeira pista do tesouro dela, é ridiculamente virginiano. Se bobear, pequena, nele está desenhado até o fio de cabelo que, depois de cair da cabeça da mamãe, decidiu estacionar a três centímetros da porta da sala da vovó e ficar por ali, cortejando poeiras.
São quatro pistas escritas à mão, quatro charadas, um mapa desenhado com lápis de cor e com as bordas delicadamente queimadas no isqueiro — que é para dar aquela cara de coisa que envelheceu sem precisar esperar o tempo do envelhecimento natural das coisas — e um tesouro embrulhado em um guardanapo branco de papel e amarrado com fita verde de cetim.
São quatro pistas.
— Mas só quatro, tia?!?
— Só quatro.
Que é para dar tempo de começar e terminar a brincadeira antes que a próxima chuva chegue plantando aaaaacthíns no peito, bagunçando cabelos e despertando os atrevidos frizz.
O cabelo dela, da prima incrédula que gritou do outro lado do quintal: “Nooooooooooosa!”, é cacheado. O meu, pequena, já foi lisoescorrido, já foi levemente ondulado, já foi tão, mas tão, curto que não tinha comprimento para ser coisa alguma, e agora vive preso — 24 horas por dia preso — porque você já descobriu suas mãozinhas e a delícia que é puxar o cabelo dos outros.
Ninguém está à salvo, filha.
Ninguém!
Ou melhor, seu tio careca não barbado está; aquele que também mora na metade norte do globo, que é artista dos códigos que fazem esconderijo nas entranhas dos computadores, e que você terá a sorte de, vidaafora, chamar de dindo.
Enquanto dou a volta na casa à procura da segunda pista, que deve estar escondida em algum outro canto do quintal, sinto um primeiro pingo cair na ponta do meu nariz.
— Será que o tesouro vai molhar? — sua prima me pergunta.
— Vai. Ô se vai!
Afinal, a Natureza tem disso: só obedece ao seu próprio ritmo, molha, seca e faz o que bem entende na hora que Deus quer.
No horizonte estamos nós, mais velhas que o próprio tempo, de mãos dadas porque somos inseparáveis, irmãs, nascidas na mesma era geológica e filhas de um mesmo abalo sísmico. Ao nos olhar com os olhos da cara, se você estiver no lugar certo, com as costas será capaz de enxergar uma porta — a que passa a madrugada com uma chave dormida dentro do quadrado de metal que trabalha conjugando e desconjugando o verbo trancar, e não a outra. Entre pela porta. Nesse cômodo procure por um objeto gordinho, que toda vez que a vovó vai pra cidade ela leva com ela, e que é recheado de objetos fininhos dengosos que para serem usados pedem por aproximação ou um encantamento de números secretos. Ali você encontrará a próxima pista que te levará ao tesouro.
Quando o calendário virou, fechei as janelas da alma para fazer uma oração. Estava vestida de branco, pronta para dizer um sim ao novo ano, e com os olhos ainda vermelhos e inchados de tanto chorar. Não era tristeza, meu amor. Não tenho motivo algum pra estar triste, a não ser pelo estado do mundo que estamos deixando de herança para você. O choro era só o resultado de um leite derramado; do ferver em fogo brando do conflito que eu e seu pai há alguns anos parecemos incapazes de resolver por completo. A gente conversa, a gente tenta, vamos aos poucos nos transformando, polindo nossas arestas e arredondando nossas esquinas para nos encontrarmos num meio de caminho, mas, vez ou outra, quase sempre na pior hora possível, o caldo entorna, a música sai do tom e pisamos com força um no calo do outro.
O baile segue, filha.
Porque nos amamos e nos queremos juntos.
Mas eu não consigo não chorar.
Não me deixar amargurar um pouco e questionar se não é chegada a hora de divorciar trabalho e propósito e fazer que nem seu pai, trabalhar só para fazer dinheiro e deixar o propósito ali, na arena da diversão, do fazer por fazer, por prazer.
Como num simples encantamento de números secretos, nossa maior e pior fonte de conflito se dissolveria e desapareceria. Esse leite não mais derramaria, a música não mais desafinaria e o meu calo perderia sua protuberância se transformando, num piscar de olhos, em planície.
Será que é hora de olhar meu pior demônio nos olhos e aceitar que perder-se encontrar a tal estabilidade financeira também é caminho?
Espero que, quando você estiver lendo essa carta, filha, eu já tenho conseguido encontrar uma resposta, e que nossos conflitos, meu e do seu pai, sejam outros: a nossa incompatibilidade quando o assunto é cebola crua, o desprezo dele pelo verbo ficaremcasa, a minha teimosia em permanecer ignorante sobre cada mínimo detalhe de cada uma das tantas guerras que assolaram a terra de onde ele vem e que estão tatuadas no DNA dele, e quiçá no seu também, minha polonezinha de alegria latina, e não mais a dúvida de se um dia a mamãe costureira conseguirá ou não pagar os boletos vendendo tapetes de palavras.
Vim da Irlanda e atravessei o Atlântico pelo ar. Eu e a Chapeuzinho Vermelho temos uma única semelhança: a cor da capa que vestimos quando precisamos nos proteger. Estou dentro de algo que há dias está estacionado sem sair do lugar e que tem o mesmo nome que eu, com uma única diferença: eu sou inho. Minha função é transportar nove quilos de extrema gostosura que, em poucos dias, fará seis meses de vida. Quando me encontrar, não perca tempo me vasculhando por inteiro, o que você procura está colado àquilo em mim que roda.
Não sei do que eu gosto mais, pequena.
Se é passear pela chácara procurando possíveis lugares para esconder as pistas, se é alongar cada fio de imaginação para criá-las, se é desvendar as charadas criadas pelos primos que, na memória, estão caçando tesouro comigo ou se é voltar a ter a idade da sua prima e estar de férias na casa da minha vó Zininha, brincando do que for, chupando manga até o meio dos dentes ficarem só fiapo-agarrado, fazendo bolo de barro confeitado com flor e confete de folha miúda, subindo nos pés de goiabeira para dar um lar no terceiro andar para as minhas bonecas ou entrar na Elba, já de biquini lilás de babadinho, para ir para a praia de Manguinhos, logo cedo, fugidos do sol do meio dia do Espírito Santo que, ainda que seja santo, não perdoa.
Talvez a melhor parte seja saber brincar, ou saber transformar tudo em brincadeira, ou quiçá jamais ter que sair da brincadeira. Afinal, para quem tem nove anos até a hora do banho, do lanche, da reza da vó, da ida à feirinha de artesanato na Praça dos Namorados nas noites de sábado, é espaço fértil para inventar outras realidades que não aquela que já vem colorida de preto e branco.
Talvez, melhor que saber brincar, pequena, seja, na verdade, saber se divertir.
E isso a mamãe sempre soube.
Sou o oposto de inteira. Só a vovó Vivi sabe para que eu servia antes de, aqui, nessa superfície mais dura que pão dormido antes de virar rabanada, ter sido abandonada para viver uma vida desprovida de um propósito que se traduza em serviço. Estou entre uma árvore das mais altas e uma outra que, mais morta que viva, descansa deitada. Para chegar até mim você terá que descer sem sair do alto. Não se deixe enganar, para encontrar o seu tão desejado tesouro você terá que me aprumar.
Te observo de longe, sem jamais desconectar o fio invisível que nos faz continuação uma da outra, filha; sem jamais deixar de saber exatamente onde e como você está, se com fome, se com sono, se com fralda por trocar ou se com aquela vontade dengosa de aproximação. Em poucos dias celebraremos meio ano daquele corte de cordão umbilical que fez qualquer coisa menos nos separar, seis páginas de calendário de parede viradas e o início de uma nova aventura: a introdução alimentar e a descoberta do verbo sentarsozinha.
Encontro o tesouro sabor chocolate que sua prima escondeu. Tive que escalar duas pedras altas e o barranco detrás da casa da vovó para chegar até ele. É claro que ela o esconderia aqui: no lugar preferido do sítio, para onde ela vem quando quer cantar para as montanhas. Daqui do alto, vejo todas e cada uma das irmãs inseparáveis, mais velhas que o próprio tempo, nascidas na mesma era geológica e filhas de um mesmo abalo sísmico. Abro os olhos da alma e, antes de voltarmos para ilha celta que chamamos de lar, finco meus pés nessa terra latina para fazer uma oração:
Que, com você, eu redescubra o poder de me entregar, dos pés até o último fio de cabelo caído, à santa diversão. Que eu siga adultecendo permeada por espontaneidade e leveza e que, de mim, seja impossível roubar o tanto de fé que eu carrego na carteira.
A vida é oração, ora ação.
Nem tudo é fruto de esforço, pequena.
Tem hora que o que a gente precisa mesmo é de um empurrãozinho de Deus.
Em 2025, não desistirei de criar nem de confiar que, mais cedo ou mais tarde, no virar de página de algum calendário, ser mulher, mãe e esposa artista deixará de ser um abalo sísmico de pura teimosia e passará a ser apenas a minha profissão. Palavra!
Com amor,
Mamãe
A
, criadora da Bálsamo e uma das Guardiãs da Vagarosa, me perguntou qual era a minha palavra para 2025. Sem pensar duas vezes, eu respondi: “Diversão.” E dessa resposta nasceu o texto que você acaba de ler.Agora, sou eu que te pergunto:
qual palavra sua intuição escolhe como bússola para esse novo ciclo?
NO TEMPO PAREI
— uma série de escritos que se tornará um livro ilustrado; um diário que sobreviverá ao tempo e terá suas páginas amareladas lidas por aquelas que vierem depois de mim.
Em meio às águas, ora serenas, ora turbulentas, do oceano maternar, escrevo sobre a mulher radicalmente suave, indulgentemente visceral e subversivamente presente que estou me descobrindo ser. Escrevo para espantar o medo e espanar o mofo, para amaciar durezas e temperar o cotidiano com um olhar poético que pousa em lugares onde a maioria insiste em não olhar.
Escrevo com apetite e entre desejos, entrelaçando a contação da história que está sendo vivida com fios de memórias passadas e futuras, buscando pedaços de certeza quando, no meu prato, há pilhas de dúvidas e de roupas por dobrar.
Escrevo para registrar memórias preciosas demais para serem esquecidas no passar do tempo, fotografar o invisível, imortalizar o mais bonito de todos os tempos já vividos e te contar que, aqui, deste outro lado da página, mora uma mulher vagarosa, feita de imperfeição, alguém que aprendeu a desacelerar e, no tempo, parar para mergulhar na imensidão que cabe nos poucos centímetros do Agora.
Ao optar pela assinatura paga e patrocinar a Vagarosa, além de desfrutar dos bálsamos exclusivos da sessão Prosa Selvagem, você me possibilita continuar poetizando o cotidiano, costurando tapetes de palavras e, entre golfadas garfadas mamadas e arrotos, derramar medicina no mundo em abundância. Saiba disso.
Com um afeto radical,
Verbena
A minha: desfrute! Irmã da diversão!
Minha palavra é : soltar !
Que texto mais precioso.