Para você, pode parecer um exagero meu.
Para mim, é o fim do mundo
.
Às quatro da matina, quando começa a parte mais desafiadora da madrugada, aquela hora em que a fralda, se ainda não vazou está quase lá e precisa ser trocada, você desperta sonolenta. Quero imortalizar seus resmungos ao pousar no trocador, desgostosa porque, apesar de ter acordado, ainda deseja dormir. Nessa hora, eu, exausta do sono picado em tantos pedaços que é até difícil fazer matemática para saber a quantidade real de acordamentos, começo a imaginar que logo logo, antes das sete, você vai despertar uma vez mais, dessa vez pronta para o dia, e iremos nós duas, eu com as marcas da noite e você com a alegria de ter nascido, para a cozinha fazer café.
Depois de uma noite longa, costurada com cuidados, choros, afagos e aqueles arrotinhos teimosos, o primeiro gole é um alívio, quase sagrado. Como se meu corpo encontrasse um consolo. O cansaço ainda está lá, nas pálpebras que querem fechar, nos ombros curvados e nos braços que parecem de chumbo, mas o café quente traz um pequeno renascer, uma faísca de energia que ilumina o dia que começa a acontecer.
O maternar é feito de noites difíceis, mas os primeiros minutos das manhãs, vividas no silêncio de uma vizinhança que ainda dorme, me trazem conforto, como um sussurro dizendo:
“Você está aqui.”
A xícara quente é quem envolve os dedos num abraço de aconchego. A inalação que vem antes do primeiro gole é uma promessa de prazer. E, nesse momento roubado do tempo, com a xícara encostada nos lábios, meu coração, que passou a noite toda pulsando no ritmo das suas necessidades, encontra o compasso do próprio bater. O café desce quente, amor próprio líquido, aquecendo o que o cansaço havia deixado frio. Do lado de fora, o céu, ainda tímido, se veste de azul e a luz frágil se espreguiça pela janela. Você, na cadeirinha de balanço, está distraída, brincando de sorrir e babar, descobrindo suas próprias mãozinhas e o que significa pegar, enquanto eu, por um breve instante, me permito estar comigo.
Só tem um problema, pequena.
O leite de aveia acabou.
E você sabe que eu não gosto de café preto.
Terças, quartas e quintas, seu pai chega do trabalho pontualmente às 17:55h. Nos outros dias, ele faz mapas, analisa demografias e pensa o futuro de cidades de casa.
Seu banho é sempre às 19:00h.
Aliás, ontem você ganhou seu primeiro patinho, sabia?
Com você cheirosa nos braços entro no quarto para vivermos nosso ritual da hora de dormir; coloco Liniker na vitrola enquanto penteio a cabeleira castanha linda com a qual você nasceu.
As letras não são para criança, eu sei. Mas elas falam de amor e amor, filha, não tem idade.
Depois do mamá, por volta de 20:30h, fecho a porta do quarto, deixando você no berço, satisfeita e caída em um sono profundo e vou para cozinha contar pro seu pai do nosso dia. Mais cedo, entre 18:00h e 19:00h, enquanto você o embrulha em afeto, eu costumo ter uma hora para mim.
Nessa terça-feira nublada, decido que, mais importante do que tomar um banho demorado, ou raspar a meia perna e tirar o bigode para lavar, o que a mamãe realmente precisa é de uma ida ao mercado para comprar o leite de aveia dela. Assim, a manhã de amanhã não será arruinada por um café preto desprovido de cremosidade.
Se eu for de carro, ficarei presa no trânsito.
Se for a pé me atrasarei para o seu banho.
Então, subo na bicicleta e, pela primeira vez em pouco mais de quatro meses, conjugo um dos meus verbos preferidos:
voar.
Entre a suavidade do vento e a força dos meus movimentos, sinto paz.
Pedalar me devolve algo meu.
O restinho de medo que, por anos, me impediu de desejar ser mãe e que ao longo da gravidez foi se dissipando, agora, com o girar do pedal, se extingue de vez. Respondendo ao movimento quase por instinto, afinal, são mais de dez anos pedalando diariamente, sinto meus pés firmes nos pedais, como se meu corpo e a bicicleta fossem uma só coisa. O vento desliza pela minha pele, fresco, me convidando a deixar o cansaço para trás. O ar, tal qual a xícara de café, me abraça, mas, diferente dela, em vez de me acolher, me expande e me solta no espaço.
Lembro que sou imensa, pequena.
As pernas ganham ritmo, os braços se firmam no guidão, e a estrada se desenrola sob mim. A sensação de liberdade faz meu peito expandir, como se as outras partes da selvagem mulher que sou que estiveram hibernando durante esses meses de resguardo, agora acordassem, uma a uma.
O medo antigo, aquele que me cegou por tanto tempo, parece distante, quase irreconhecível. O receio de que a maternidade me apagasse, de que eu deixasse de ser quem sempre fui, desaparece na certeza de que tudo o que sou está aqui, mais vivo e forte do que nunca.
E esse é um presente que você me deu,
nunca se esqueça.
Já te contei que eu era dessas mulheres que acredita que o verbo maternar é inimigo do adjetivo livre, e que essas duas significâncias não podem ser escritas juntas em uma mesma frase, não foi? Hoje sei e sinto que não há expansão mais deliciosa do que aquela que acontece dentro dos contornos livres da palavra (sua) mãe.
Ao imaginar o futuro, vejo, quase como se fosse agora, você sentada atrás de mim, segura, curiosa com o mundo ao redor, seu sorriso se abrindo enquanto sentimos juntas o vento no rosto. Penso em como será compartilhar com você essa minha metade selvagem, te mostrar a liberdade de voar e ouvir seu riso se misturar ao som das rodas no asfalto.
O que hoje é meu, em breve será nosso.
E ser nós é o que me faz ainda mais eu, Vicky.
com amor,
Verbena Cartaxo
mamãe.
Em meio as águas ora serenas ora turbulentas do oceano maternar, escrevo para registrar memórias preciosas demais para no passar do tempo serem esquecidas, fotografar o invisível e imortalizar o mais bonito de todos os tempos já vividos.
NO TEMPO PAREI é um diário desses escritos à mão que sobreviverá o passar do tempo e terá suas páginas amareladas lidas por aquelas que vierem depois de mim; essa série de textos costurados com fios de visceralidade, vulnerabilidade e uma poesia medicinal está e continuará sendo escrita ao longo dos próximos meses bem aqui na intimidade do nosso ninho.
Dessa série nascerá o meu primeiro livro.
Quem estiver ao meu lado na roda ao longo dessa bela temporada, como Guardiã da Vagarosa, apoiando financeiramente o trabalho dessa poetisa mãe, além de ter acesso ao conteúdo exclusivo da assinatura paga receberá também uma cópia física do meu primeiro livro ilustrado quando ele sair do forno, e encontrará seu nome nos agradecimentos.
Ao escrever eu me faço escritora.
Ao patrocinar a Vagarosa você me possibilita continuar poetizando o cotidiano, pingando palavras no papel e, entre golfadas garfadas mamadas e arrotos, derramar medicina no mundo.
Saiba disso.
com um afeto radical para você que me lê,
v.
Das alegrias indispensáveis de minhas manhãs, uma delas sem dúvida alguma é te ouvir. Obrigada. ❤️
ahhhh Vicky! um dia você vai entender o quanto a medicina da sua mamãe aquece a alma de outras mulheres. eu senti o vento enquanto lia! foi lindo!