Vez ou outra vejo a vida como se fosse um palco.
De pano de fundo, o caos do mundinho doméstico quando decide descarrilhar: a voz do marido que nesse momento sofre, e como sofre, de dor de dente e no telefone pede
Cześć, czy dałoby się umówić mnie na pilną wizytę do naszej dentystki? To coś nagłego.
à recepcionista da clínica da nossa dentista polonesa que arranje um horário de emergência; o resmungo com notas carameladas de choro da filha que já se tornou a dona da casa, enquanto a mãe com seus tentáculos abraça a ininterrupta tarefa de ser dona de casa; o barulho da máquina de lavar roupa e também da de lavar louça; o toc-toc-aperta-e-fura-e-bate dos homens que estão trabalhando no telhado da vizinha; o cortador de grama e o soprador de folha que dois alguéns, nessa manhã ensolarada, resolveram usar. E no meio de tudo isso, a protagonista — heroína ao avesso — em pé diante da janela da cozinha, fazendo exatamente o oposto daquilo que vem se dedicando a praticar:
exercitando seu direito constitucional de se descolar da trama da vida ao invés de, com uma presença radical, nela se emaranhar.
Ela deixa o tempo correr. Na desaceleração, amarra um fio que a suspende no agora, separando sua continuidade natural (ou seria socialmente imposta?) do caos que na casa se instala e que, nela, busca ordem.
O pano de fundo fica cada vez mais no fundo enquanto ela salta desse vagão, que fugiu do roteiro-rotineiro, para respirar e segurar a sanidade pelo rabo, antes que ela faça a única coisa que a heroína ao avesso não pode fazer:
sair correndo da sua própria história.
//
Há cinco anos paro de frente para essa janela, com a barriga encostada no balcão de madeira e contemplo o Freixo que, dia e noite, guarda nossa família. Sorte a nossa termos como Guardiã da nossa mundanidade uma árvore tão cheia de simbologia na mitologia Celta.
Ash tree —
ponte entre o visível e o invisível, símbolo da vagarosidade, da paciência e do tempo interno soberano; a última a perder suas folhas no outono, vivendo uma transição tardia que acontece sem grandes alardes. Suas folhas ganham tons de carmim e roxo e não competem com o amarelo alaranjado das outras tantas árvores que cercam o nosso apartamento no térreo. Também a última a despertar da hibernação de inverno, começando a soltar seus brotos e novas folhas só em maio, quando todas as outras já esbanjam uma folhagem exuberante e generosa em diferentes tons de verde.
Descolada da realidade, ausente da presença radical que me empenho em praticar, devaneio-me para manter a lucidez. E, no enquanto do assar de um pão, me demoro em uma troca de olhar com o Freixo desfolhado — vestido de sua secura invernal.
Procuro sinais.
Já é maio e não vejo nenhum broto.
Onde será que Ela está?
“Aqui estou. Ainda que pareça não estar”, ouço a Anciã sussurrar pela fresta da janela, por onde escapa o cheiro das cozinhas da minha infância.
“Descolada do calendário, aqui estou.
Honrando o único tempo no qual sei existir:
o meu próprio”.
//
Tiro o afeto do forno, corto uma fatia generosa, passo primeiro a manteiga, depois o mel, e depois mais mel, encho minha xícara de chá de camomila e volto a me emaranhar no único tempo no qual sei dançar.
Até tento planejar o futuro. Mas hipóteses me cansam. Sou mesmo das que só acredita na possibilidade de alterar o agora, trabalhar com o que se tem em mãos, ser quem já nos tornamos, e confiar que a vida cuidará de me levar àquilo que vim destinada a viver e,
com meus próprios olhos, tocar.
Com os dedos e boca lambuzados de doçura, busco silêncio para te escrever. Não há.
O pano de fundo entrou pro avesso da protagonista. Hoje, minhas palavras são só ruído, barulho de soprador de folha e cortador de grama, som de máquina de lavar girando roupa de neném pra lá e pra cá, toc-toc-aperta-e-fura-e-bate, no telhado e nas têmporas.
Não vou me espremer para pingar poesia.
Vou te enviar a liberdade de, ora ou outra, publicarmos um fragmento do nosso inacabado
e ir dançar
ou descansar
na presença paciente daquela que, da janela, nos guarda enquanto aguarda sua hora de re-brotar.
Com um afeto radical,
Verbena Cartaxo

Vagarosa Lab — território de reencantamento criativo
No dia 25 de Junho, abrimos as portas para o primeiro ciclo criativo da Vagarosa: Seselelame: o cultivo do Corpo Selvagem.
Durante quatro semanas, você será guiada através de textos e práticas (enviados às quartas-feiras) em um delicioso processo de (re)descoberta sensorial — enraizado na escuta interna, no movimento somático e na expansão da percepção daquilo que entendemos como nossas fronteiras.
Seselelame — palavra da língua setswana que significa “se deixar tocar no íntimo” ou “escutar com o sangue” — é um convite para ressignificar os sentidos e se abrir a formas mais intuitivas, ancestrais e afetivas de perceber, processar e comungar com o mundo — de dentro para fora.
Essa travessia nasce de uma visão de mundo que não separa corpo e espírito, razão e intuição, indivíduo e coletivo. Uma percepção que reconhece o corpo como território sagrado, poroso e pulsante — entrelaçado à natureza, à linhagem, ao tempo profundo e às forças invisíveis que nos atravessam.
Nessa cosmovisão, inspirada por saberes ancestrais como os do povo Ubuntu e de tantas outras matrizes que cultivam a interdependência, o corpo não é uma engrenagem a ser otimizada, mas sim um arquivo vivo de histórias, um instrumento sensível de escuta e expressão, uma ponte entre mundos.
Para participar desse primeiro ciclo criativo, adentre as terras radicalmente férteis da assinatura paga clicando no botão abaixo — no navegador do celular ou desktop.
Se você já é uma das apoiadoras e Guardiãs da Vagarosa, não precisa fazer nada: seu lugar nessa bela travessia está garantido.
Para quem é o Vagarosa Lab?
Para você que deseja criar a partir do corpo, do prazer e da intuição.
Para você que anseia por uma criação profundamente enraizada nos sentidos — e quer deixar que as palavras fluam com leveza, sem as amarras do perfeccionismo ou da voz mental que sabota.
Para você que, depois de tanto oferecer ao mundo, escuta o chamado de voltar para si. De nutrir sua relação consigo mesma. De reencontrar sua voz, sua sensualidade natural e o prazer de criar — resgatando a potência da mulher que, por vezes, ficou em segundo plano.
E também para você que enxerga na escrita e no movimento um espaço sagrado, onde os sentidos se expandem e a criação acontece de forma intuitiva, sensível e radicalmente livre.
Se sua criatividade está pedindo espaço, nutrição e um tempo onde o ritmo interno é soberano — então o Vagarosa Lab é o seu território de reencantamento criativo.
Será uma alegria te acolher nesse círculo íntimo.
Clareira
Uma consultoria para quem escreve, ou deseja escrever, no Substack
Talvez o que você esteja buscando agora seja um espaço de pausa e visão. Um lugar onde seja possível olhar com mais clareza para o que você está criando — ou deseja criar — no Substack.
A Clareira é uma consultoria para afinar a bússola, alinhar os pontos-chave da sua publicação de forma estratégica e irreverente, e abrir caminhos para que sua escrita floresça com mais liberdade criativa, acompanhando seus ciclos, desejos e pulsões.
Ambos os modelos de consultorias — Pocket e Expandida — são personalizáveis e acolhem tanto quem está começando quanto quem já escreve no Substack.
A Pocket pode ser o primeiro passo para quem quer orientação e organização iniciais, ou para quem deseja alinhar sua publicação atual com seu momento presente.
A Expandida oferece uma doulagem e acompanhamento profundo, ideal para quem deseja um olhar cuidadoso sobre o começo da sua jornada na escrita, assim como para quem busca viver novos voos criativos e re-estruturar uma publicação já consolidada.
Seja para refinar uma publicação que já existe ou começar do zero, você escolhe o formato que faz mais sentido para você.
A agenda para Junho e Julho está aberta.
Para mais detalhes, clique aqui.
adorei o texto, tão real e tão poético. e a árvore como testemunha das mudanças que a vida impõe ou sugere é bonita e tem um quê de companhia ancestral nessa caminhada 🫶
Como é bom te ler. Teu viver transborda poesia e beleza. Teu olhar inspira. Impossível não te ler sem suspirar, sem ter um incômodo aqui, sem colocar caraminholas na minha cabecinha e um desejo profundo por mergulhos. Obrigada por tanto, sempre. ♥️