Feito o bicho que sou
Meu relato de parto: quando o Selvagem vira do avesso e nos cobre em manto
De todos os fios de cabelo branco que um dia hei de ter, se seguir ainda por bastante tempo sobrevivendo à possibilidade de não sobreviver, só um único, dos mais tímidos, já me frequenta. Ainda assim, sei, como quem com toda certeza sabe, que hei de envelhecer precocemente. A água fervendo de cada banho que, por inteiro, me toma, está cuidando da antecipação de enrugos na pele.
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Fecho a porta do banheiro e me abro para a nudez, despindo-me das testemunhas de mais um dia igual da minha Matricência mutável. Primeiro tiro as meias coloridas, depois desabotoo a calça um tamanho maior que o velho 36, agora já um tanto largas porque amamentar uma pequena que só cresce tem me aparado a fartura de curvas pós-parto. Em seguida tiro a blusa, depois o sutiã manchado de leite e, por fim, a calcinha de algodão cor de escuridão. Solto o cabelo do coque alto e, ao passar os dedos por entre os fios, assisto mais um tufo castanho se desprender, virando as costas para a vida que vínhamos construindo juntos. Embolo o medo de estar ficando careca e o jogo na privada, já dando descarga que é para esquecer.
Ligo o chuveiro e entro no trem à vapor.
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No plano de parto desenhei uma banheira.
Logo eu que vou a praia e só entro n’água se o sol estiver rachando a moleira e gotas de suor já estiverem escorregando pelo meio das costas, que frequento cachoeiras e me atrevo a molhar só a visão, e que só tomo banho frio se já for o terceiro dia sem chuva doméstica e o adjetivo cheirosa não puder mais, claramente, ser usado para descrever a sujeita eu.
Mas, para parir, me imaginei aquática
fluida,
ancorando em Iemanjá na expectativa de, quiçá, fazer escorregar para fora do seu mundinho uterino intraoceânico, aquela que ao longo de nove meses pacificou meus rios revoltos.
Cheguei no hospital de bolsa rompida, vazando à algumas poucas horas o líquido com cheiro adstringente que possibilitou outro ser existir dentro d’eu. Essa criatura, que de mim em breve sairia, desde o início das contrações irregulares que começaram na primeira hora da madrugada daquela quinta-feira, cessou seus chutes, soluços e qualquer sinal do ondular de suas barbatanas.
A falta de movimentos não me preocupou.
Me imaginei no útero da minha mãe, começando a jornada de descender rumo ao parto, instintivamente farejando o caminho para chegar na melhor posição, girando para encaixar, produzindo hormônios nunca antes produzidos e arquitetando essa dança simbiótica com o corpo materno e soube que, sim, eu também escolheria não gastar energia chutando, soluçando ou me distraindo da tarefa hercúlea de me fazer nascer.
Ao longo do dia na maternidade, tendo os batimentos da ainda não nascida cria monitorados por um pedacinho de tecnologia, amarrado a uma fita envolvendo a parte mais exuberantemente bela, redonda e vistosa que meu corpo já experimentou ter, fui sendo informada, pouco a pouco, que o parto não poderia ser aquático.
Virginiana que sou, peguei borracha em meio as contrações que já me tiravam do plano terrestre e apaguei a banheira do meu desenho de parto.
Haveria de parir em terra, no meu habitat natural — ancorada não numa expectativa de fluidez líquida mas na estabilidade do chão que, até quando tudo, outrora, pareceu faltar, não saiu de debaixo dos meus pés.
De quatro fiquei, feito o bicho selvagem que sou.
Dançando a dança menos performática e mais importante que já dancei na vida, ondulando-me em comunhão com o invisível aos olhos, essa força fêmea que descalcifica ossos, dá malemolência as cartilagens, alarga canais, tecidos, musculaturas, e faz o humanamente impossível se materializar em horas, vivi ali o fragmento de tempo mais importante da vida até aqui — onde descobri que, uma década inteira dedicada a conhecer meu Corpo, curar minha relação com ele e dá-lo plenos poderes para, de mãos dadas com a intuição, ser o piloto da minha jornada pela vida, me prepararam não para o que estava sendo vivido mas para confiar que Ele, meu Corpo Oráculo, daria conta de me fazer chegar do outro lado do portal.
Escolhi não usar nenhuma outra anestesia além do gás que dá aquela bobeirinha. No pior das contrações, enfiava o cano na boca e o mordia com a ferocidade de um jacaré que encontrou um cavalo dando sopa. Não nos debatíamos, nem o cavalo nem eu. O único movimento que meu corpo fazia era o de descer o quadril cada vez mais para próximo da Terra, arreganhando-se e, feito serpente, se ondulando para acompanhar o movimento da bebê que, pelo túnel de nascer, vinha vindo.
Ouvindo o Corpo que, claramente, me instruía a abocanhar o cano de gás e pressionar, com toda a força capaz de ser conjurada, a arcada dentária contra o tubo de plástico duro, esquecia de inalar a bobeirinha.
Nada contra anestesias e nada contra a evolução da medicina que hoje possibilita partos com menos dor, pelo contrário. Mas, naquele que tudo indica seria o único parto que meu Corpo teria a honra de hospedar nessa vida, eu escolhi sentir tudo — o tsunami inteiro. Escolhi dançar com o Selvagem na beirada do precipício, tatuar na carne o momento exato onde parece impossível seguir adiante e sobre-humano esperar que uma mulher, na comunhão com o escuro, dê à luz; onde o espiritual em nós vira do avesso e nos cobre em manto, e a única saída é tirar o mental do caminho, silenciando cada medo por completo para adentrar, de olhos fechados e sem membros para tatear o próximo passo, o maior de todos os desconhecidos por nós conhecido.
Nasceu e não tomou banho o meu filhote.
Entrei no chuveiro dezoito horas depois para lavar o sangue que estava impresso no peito — o lugar para onde a cria recém-parida havia engatinhado ao adentrar o mundo para fora da minha pele, em busca da teta e da familiar batida de coração. Guardei num vidrinho de eternizar encantos o cheiro de fêmea suada, do sangue misturado a liquido amniótico, do encontro de peles pela primeira vez, de oceano de ocitocina, da presença do pai da filha, o marido que lutou para não se divorciar quando de nós eu desisti, do cabelo castanho escuro melado de útero, das 16 horas de ativa espera, desde o sair do tampão, da primeira contração e do romper da bolsa em uma das infinitas idas ao banheiro que acometem grávidas no terceiro trimestre.
Feito bicho, fiquei de quatro para cheirar o líquido que, depois de escorrer pelo meio das pernas, fez pequenas poças no chão. O cheiro adstringente com notas de uma doçura singular não deixava dúvidas: não era xixi.
Era chegada a hora de parir.
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O trem passa e fico eu, no vapor.
Com os dois braços caídos ao longo do corpo magro adornado por uma barriguinha flácida que, na hora das mamadas, serve de travesseiro para a pequena que hoje dá chutes e esperneia do lado de fora da minha pele.
Deixo a chuva molhar cada milímetro do meu cansaço, acarinhando e cuidando-o para que não vire exaustão. A água quente cai no topo da cabeça e por sobre os ombros, escorrendo-me até chegar aos pés que desconhecem o caminho adiante e as paisagens futuras. Estico os únicos dez minutos que tenho no dia para estar em solitude, fazendo deles uma ode ao agora. No banho, comigo, nada nem ninguém entra. Ali despida das testemunhas de mais um dia singular como outro qualquer, de tudo que fui, tudo que sou e do estou aprendendo a ser, viro bicho aquático, continuação da queda d’água, pedaço molhado de mulher, corpo desprovido de pensar — oceanado pela possibilidade de, ora ou outra, só sentir
tudo,
o tsunami inteiro.
E com o Selvagem dançar na beirada do precipício, tatuando na carne materna a infinidade de micro momentos exatos onde se revela impossível não seguir adiante e, na contínua comunhão com o escuro, se fazer diariamente, farol.
Com um afeto radical,
para você que neste santuário escolhe estar.
Feliz Dia das Mães!
Verbena Cartaxo
ps: estou trabalhando que nem formiguinha e ainda não consegui responder todos os comentários que chegaram nas últimas edições. Responderei cada um de vocês, com calma e carinho, logo mais.
Obrigada por me escreverem!
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O Atlas é um organismo vivo e será periodicamente atualizado, à medida que novas comadres forem chegando. Considere compartilhá-lo com sua rede para que a palavra continue sendo espalhada.
As mulheres da
te agradecem!Clareira
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Que relato, V.! Estou para escrever o meu segundo também. Vamos ver se sai até o fim do mês ❤️
Feliz demais com o lançamento do Atlas:) e doida para fazer um café (nem que seja ainda virtual!) acontecer. Quem sabe a gente reúne todo mundo que estiver no mesmo fuso (+/-1h)?
Feliz dia das mães, minha querida!
Ahhh, V. Que relato mais lindo. Parir é acessar um portal místico, se reconhecer selvagem, bicho - das coisas mais incríveis desse ser mulher, na vida.
Feliz dia das mães e obrigada por tanto! Um beijo grandão!